Criogenia de D.

Criogenia de D. Leonardo Valente




Resenhas - Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos


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Krishnamurti 27/05/2021

Criogenia de D. – ou manifesto pelos prazeres perdidos. Um livro para guardar na memória
Por Krishnamurti Góes dos Anjos (*)

Em meio à profusão de títulos que se vem publicando atualmente, depararmo-nos com o romance “Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos”, do jornalista, professor e escritor Leonardo Valente, é verdadeiramente um achado! A começar pela capa. Reprodução da tela do pintor Ismael Nery (1900-1934), “figuras em azul” que é obra de 1920 e nos inclina a pensar em múltiplas narrativas. Voltemos ao texto, e vejamos porque trata-se de obra muito singular. Antes vale lembrar o que significa Criogenia. A criogenia humana é aquela técnica que permite refrigerar corpos até a temperatura de -196º C, fazendo com que o processo de deterioração e envelhecimento pare. A grande expectativa no desenvolvimento de tal recurso (que já funciona como meio de preservação de embriões humanos e alguns poucos órgãos), é a possibilidade de manter cadáveres congelados anos a fio para ressuscitá-los um dia. Aí é que está o nó górdio que a ciência não decifra.

Muito bem; a personagem D. abre sua narrativa com uma incógnita digna de nota. Não assume definitivamente seu gênero. Revela-se ora como masculino, ora feminino. O que deseja, e afirma categoricamente, é tornar-se o que escreve e, congelar-se pela palavra para que a sua exposição sem limites seja a grande e permanente resposta ao abandono de seus ex-maridos.

5 maridos! E então temos o desfiar de um rosário, em que o enredo se desenrola, entremeado de profundas reflexões existenciais, sempre ligadas aos relacionamentos que lógico, não deram certo. Vejamos o currículo matrimonial, com as razões (sempre revisitadas ao longo da narrativa), das separações respectivas do(a) moço(a) de seus ex-maridos – uma confusão muito interessante essa, porque tão comum hoje em dia. Tanto faz se homem ou mulher. O pau que dá em Chico, dá em Francisco(a). Pauladas que acometem a todos, sem distinção de gênero: “o primeiro me deixou após ter alugado seu primeiro apartamento por conta própria, sem que eu fosse o fiador; o segundo após ter aprendido a usar talher de peixe e a ter encontrado alguém para o qual entendeu poder ensinar; o terceiro quando percebeu que não conseguiria ser monogâmico – o terceiro é bem irrelevante- ; o quarto assim que se deu conta de que não era protagonista do casal; e o quinto ainda está aí, morto vivo não sei até quando, até quando eu for útil, talvez.” p. 65.

D. se autodiagnostica portador(a) de síndrome da imunodeficiência afetiva (que contraiu do segundo marido), e também porque foi sistematicamente traído(a) por três anos a fio. Aprende na marra a ser infiel – mesmo em que pese a tal culpa cristã que fustiga seus neurônios –, ela(e) mete o pé na jaca: “anistiada, mergulhei-me no proibido do sexo impessoal, individualista e fordista, porém disfarçado de procura por um amor, pois assim funciona melhor. adoro chamar de amor um desconhecido, pedir em casamento alguém de quem sequer sei o sobrenome, evocar o encontro de almas gêmeas antes do sexo oral, fazer mil promessas e sumir imediatamente após o orgasmo, pois ainda estou casada.” p. 23. Está casada a essa altura ainda, com o quinto marido. Se lamuria a todo instante, e se sente vítima de injustiças e desamor: ... “porque das quatro vezes em que supostamente me casei, em todas a despedida não partiu de mim, não sou senhor do meu futuro amoroso, sou uma puta usada e descartada ao bel-prazer e de acordo com os interesses e desinteresses alheios. sou escravo das minhas limitações, do meu medo da solidão (como se todos não fôssemos totalmente sós ao nascer e ao morrer), e empregada dos meus maridos, sempre com medo da demissão.” p. 30. De reflexão em reflexão ela chega a algumas fulcrais que são como lampejos de consciência na narrativa. Amar lhe tem sido um eterno e pesado ciclo: “constitui-se, em verdade, de uma tentativa de compra daquilo que acho que não possuo. amo o que não sou para ser tudo o que acho que gosto e admiro; amo para ter o outro como apêndice ou anexo; procuro um relacionamento como ato expansionista de meu território”. (!). p. 67.

Não há saída para D. Se por um lado rendeu-se “à comodidade de considerar que já me conheço. como é bom ter a falsa sensação de autoconhecimento completo, de que nada mais é necessário garimpar e de que o desconhecido da vida acontece apenas do lado de fora, no campo externo ao corpo, que é o tudo menos eu.” p. 38., por outro lado, “tenho muitos pontos finais guardados em mim devido à incapacidade de usá-los, acumulo travessões engasgados na garganta, parênteses que ruminam em meu esôfago e um arsenal de exclamações e de interrogações armazenados em um porão empoeirado de meu espírito,” p. 64. É pura essência fraudulenta, reconhece a certa altura.

Leonardo Valente arma em sua narrativa todo um jogo de cena que inclui efeitos gráficos muito bem urdidos, liberto de convenções formais mas que não perde em momento algum o fio narrativo. Tudo se encaixa perfeitamente e foi muito bem pensado, a começar pelo “epílogo fora do lugar” que abre a narrativa. O objeto livro que o leitor tem em mãos, apela para a relação entre palavra e página, joga com espaços em branco, com a variação do tamanho das letras, com a utilização de trechos escritos em maiúsculas e outros em estruturação formal de poesia e subverte até a pontuação.

Mas que mistério desgraçado é esse de D.? D de Deus, D do diabo? Não se sabe, cada leitor encontrará sua resposta, embora estejamos inclinados a perceber influências diabólicas sobre alguém que escreve: “pelo menos uma vez por ano preciso: - viajar para uma praia do Nordeste com um amante de pau grande ou com um marido ou namorado. se necessário, banco a viagem: se for marido ou namorado, é aberta a concessão ao pau pequeno, também banco os passeios.” p. 57. Por outro lado deseja na mesma lista que escreveu isto: simplesmente “encontrar “uma alma gêmea”... Uma tristeza de indivíduo que acredita que a memória humana pode ser servida à la carte (ou seja, onde o cliente escolhe o que comer)... Adora cozinhar, cozinha e congela os alimentos – todos industrializados mas com sabor disfarçado – , daí talvez a associação com a criogenia existencial. Segue a vida preenchendo vazios com outros vazios. Mas eis que: “o quinto foi embora. meu Deus, meu Deus, que dor. tudo de novo. que dor de dente. volta, Damião.” p. 84. Começa novo ciclo. Será que o sexto vai chegar? Vale a pena, muito, conferir o desfecho.

Positivamente a narrativa toca em prementes dilemas de nossa contemporaneidade tais como o alerta que faz quanto as armadilhas da linguagem, para as quais deveremos estar atentos. Trecho: “minto tanto que às vezes não sei diferenciar a realidade do que inventei. sou um mentiroso de coisas fúteis e de coisas relevantes. minto para mim antes de mentir para qualquer outro, mas também minto para fora.” Interessante notar que todos os ex-maridos de D. eram desconhecidos que apareceram na TV – veja-se a força metafórica que isto tem. Censura com veemência a sociedade patriarcal que baliza nossas relações, e que atinge inclusive os homens pelo que tem de negativo quanto a regras e preconceitos inumanos. E finalmente, não se pode deixar de referir a intertextualidade que estabelece com os romances Anna Karenina de Liev Tolstói (que obra de 1877) e Madame Bovary de Gustave Flaubert (publicado em 1856). Ambos retratam personagens femininas que notadamente foram presas e vítimas da sociedade em que viveram. Ambas se suicidam. Freud identifica nesses romances, que mecanismos de autodestruição foram fortemente ativados, já que a sensação de vazio resulta da depressão e o desejo de “sensações novas e perigosas”. A traição matrimonial, segundo ele, não é mais do que a busca da morte perdida, um desejo de morte não elaborado, o novo entusiasmo provisório antes da próxima desilusão, já que o inferno são os outros. Emma Bovary vai deixar de “esperar todos os dias alguma coisa que nunca vem” para atingir a felicidade eterna e Anna Karenina mimetiza o suicídio de um operário atirando-se para a linha férrea, suicídio esse que ocorreu no dia em que conheceu o futuro amante na estação ferroviária. Chegaram, assim, as duas ao destino inconscientemente desejado. Já D. não se mata de forma alguma, nem cogita disto. Mas esta pronta(o) a atirar o seu par infiel na frente da primeira locomotiva que aparecer.

Muito bom. A escritora Maria Valéria Rezende escreveu sobre este livro: “A leitura mais espantosa, provocativa e mais completa como testemunho desse momento, um livro com valor histórico. Uma das coisas mais geniais é a oscilação de gênero de D., personagem que reflete sobre o caos terrível que atravessa transversalmente todos no mundo de hoje. Uma narrativa repleta de referências e perfeitamente integrada, mas que consegue descrever a desintegração pela qual estamos passando. Genial.” Acrescentamos de nossa parte, que é obra da melhor qualidade literária, porque entre tantos e tamanhos recursos de estilo com que o autor nos brinda, é portadora de profunda mensagem humana para nossos tempos de tanta desilusão e de perda da fé em nossos destinos.

Alguém Escreveu também (não me lembro quem): “Não, não é solução, atirar-se debaixo de um trem como a Anna de Tolstói, nem sorver o arsênico de Madame Bovary antes de despir o manto que cobre a cabeça e começar a atuar. Deve haver outro modo de ser. Outro modo de ser humano e livre”. A concepção de um(a) personagem como D. parece indicar-nos que também não é solução deixarmo-nos levar pelo que nossa sociedade hedonista vem empurrando goela abaixo como receitinhas de comidas semiprontas e industrializadas por exemplo, ou esse despautério de relações ‘amorosas’, à torto e à direito. Uma sociedade que se ocupa quase que exclusivamente daquele antigo dito popular de “muita fome, muito amor, a eterna história da vida”, e que sequer se preocupa em perpetuar a espécie. Não é casual que quase não haja menção a desejar ter filhos! O cúmulo a que chegamos, o de aspirar perpetuar-se egoisticamente a si mesmo via criogenia. Seguimos afundando os pezinhos na lama da ilusão.

Livro: Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos. Romance de Leonardo Valente. Editora Mondrongo – Itabuna – Bahia 2021, 130p.
ISBN 978-65-86124-50-7

Link para compra e pronta entrega:
https://www.editoramondrongo.com.br/produto/232479/criogenia-de-d

(*) Krishnamurti Góes dos Anjos é escritor, pesquisador e crítico literário. Tem publicados os livros: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos, Doze Contos & meio Poema e À flor da pele – Contos. Participou de 28 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Há textos seus publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último romance pela editora portuguesa Chiado – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 300 obras de literatura brasileira contemporânea publicadas em diversos jornais, revistas e sites literários.
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Cristiane 05/07/2022

Criogenia de D. Ou manifesto pelos prazeres perdidos
D narra a sua história a partir dos relacionamentos amorosos que teve e o fim de cada um deles. Busca uma originalidade em sua vida mas não encontra: desde de suas receitas culinárias até sua forma de ser e estar no mundo.
O autor utiliza recursos muito interessantes em sua narrativa: não identifica o gênero do narrador, a forma que utiliza a pontuação, a organização dos parágrafos entre outros recursos.
O final é surpreendente (apesar de ter uma pitada de Tolstói.
DANILÃO1505 06/07/2022minha estante
Parabéns, ótimo livro

Livro de Artista

Resenha de Artista!




Leila de Carvalho e Gonçalves 10/06/2021

A Vingança
Se a boa literatura está em toda parte, só a ousadia é capaz de revigorá-la e apontar caminhos que a maioria das vezes não se enquadram nos padrões de mercado, mas conseguem reunir um número restrito de leitores disposto a percorrê-los. Essa perspectiva abarca a provocativa obra do niteroiense Leonardo Valente cujo quarto romance, A Criogenia de D. ou Manifesto Pelos Prazeres Perdidos, acaba de ser publicado com o selo da Editora Mondrongo.

Um livro que, à primeira vista, parece estar ao contrário, já que o epílogo aparece no lugar do prólogo. Contudo, essa desconstrução da estrutura narrativa atua como um atalho capaz de tirar o leitor de sua zona de conforto e catapultá-lo para o epicentro de uma história que, coalhada de poesia e cerzida pelas reflexões filosóficas, oscila entre a comédia e o drama em poucas linhas.

Por sinal, uma história cujo texto também exibe regras heterodoxas. Nela, o alinhamento e o tamanho da fonte são arbitrários, os espaços em branco surpreendem, as letras maiúsculas restringem-se a um capítulo, sendo que nenhum é extenso e boa parte possui um único parágrafo.

Entretanto, nada é ao acaso, tamanha estripulia interage com a narrativa e ela não está a cargo do escritor, é D., a personagem principal, quem as comete. Logo no ?começo?, Leonardo Valente exime-se de qualquer responsabilidade a respeito: ?aqui sou noite constante. penduro-me em um cabide no fundo do armário e tranco a porta. uma vez longe de mim, consigo sentar-me e escrever sobre o que não sou. e ao escrever sobre o que nunca fui, faço-me entender em essência.?

Mas afinal, quem é D.? Trata-se de uma personagem cujo gênero não é revelado nem importa, e ?que pretende tornar-se tão somente o que escreve, congelar-se pela palavra para que sua exposição sem limites seja a grande e permanente resposta ao abandono de seus ex-maridos?. Curiosamente, todos compartilham o nome Damião cuja inicial ?d? levanta uma interessante questão: amamos o outro ou um espelho de nós mesmos?

Quando se apresenta, D. alerta ao leitor que é uma farsa: ?confiar no que escrevo é uma temeridade. confiar na escrita é um exercício insano. desnudar-me, na verdade, é tornar-me ilegível.? Essa afirmação age feito um escudo para que ela ou ele possa ?exercer a liberdade como um mandato e rebelar-se contra toda culpa?, pois se desnudar também é escancarar sua fragilidade.

Uma fragilidade que deixa à mostra uma imensurável solidão, redimensiona seus sucessivos casamentos, infidelidades e expõe um desencanto que pouco a pouco vai minando seu prazer pela vida, tornando insossos até mesmo seu fetiche sexual e o prazer pelas experiências culinárias que, com exceção de um penne ao funghi, jamais ousaria fazer ou experimentar. Enfim, esse ?manifesto pelos prazeres perdidos? é um mergulho até o fundo do poço, um congelar que se estilhaça em pedaços feito um espelho e nesse ambíguo processo de desintegração, desafia: D. e seus Damiões são um só ou legião?

Quanto a ideia de criogenia, ela gira ao redor da finitude da vida e sua eternização pela escrita, até mesmo como estratégia para se atingir um determinado propósito, no caso, a vingança. Uma discussão que envolve o limitado e precário papel da memória alem da real importância do legado que iremos deixar.

?gelo eterniza. papel também. eternos com prazo de validade, que fique claro, uma vez que desconheço o eterno em seu sentido mais vulgar, nunca soube de eternos eternos. gelo detém por algum tempo o próprio tempo, interrompe os processos corrosivos mais acelerados da carne vulnerável à decomposição e ao desaparecimento. mas o gelo cobra um preço para que a carne não volte tão rápido a ser pó: ele precisa interromper a vida para interromper o tempo. criogenia é a interrupção do tempo com o custo da vida, a manutenção da matéria exatamente como está no momento em que é congelada e tornada inerte, sem essência dinâmica. mesmo assim, quem é crionizado tem esperança de volta à vida. esperança é o verdadeiro antônimo da morte, a palavra que mais deve lhe incomodar.?

Enfim, um livro denso cuja leitura foi uma grata surpresa, como afirma a escritora Maria Valéria Rezende: eis ?uma história lucidamente insana?.
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@literaturar_ 18/07/2021

Era como se esse livro nascesse da sua própria vontade?
Um livro com estrutura e conteúdo impecáveis. Possui uma riqueza de referências explícitas ou não, mas que o tornaram perfeito!

D. passeia pela identidade de gênero, enquanto se constrói por meio da sua escrita.

Um belo romance que aborda especialmente a relação mais importante e complexa que temos.

Ler esse livro foi ler a mim mesma ao mergulhar no ser humano imperfeito e extremamente real que é esse protagonista.

?a intenção inicial deste livro era ser poço, mas virou espelho e agora vai ser gelo?.
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Alexandre Kovacs / Mundo de K 26/06/2021

Leonardo Valente - criogenia de D.
Editora Mondrongo - 130 Páginas - Capa de Cláudio Duarte sobre a tela "Figuras em azul", de Ismael Nery (1920) - Lançamento: 2021.

Todos conhecemos os benefícios de um narrador pouco confiável como estratégia narrativa ficcional, tanto para a revelação controlada de elementos da trama quanto para a construção de um desfecho inesperado, contudo, em seu mais recente lançamento, Leonardo Valente leva este recurso até as últimas consequências ao nos apresentar um(a) protagonista sem gênero fixo que, ao desnudar-se de maneira farsesca, busca a perpetuação criogênica pela escrita, revelando ao mesmo tempo os impasses e ansiedades tão comuns do nosso tempo.

Um livro difícil de definir e resenhar porque a androginia de D. provoca uma falta de referência que a princípio desnorteia o leitor, mas permite ao autor se libertar da camisa de força do corretor ortográfico e escrever simplesmente, conduzindo o livro ou romance – na falta de definição melhor – para questões existenciais de caráter mais humanista, questões que, em última análise, independem do gênero masculino ou feminino.

"encontro-me finalmente seca e gélida como folha de árvore caduca em inverno de neve, e é seco pela frieza que vivo em plenitude, na abundância do que tenho de melhor. sou realmente feliz e farta nos momentos de aridez da alma, na temporada de desidratação da hipocrisia romântica; sou tranquilidade e transbordamento de mim mesmo nos preciosos períodos de desamor; neles sou arisca, maldoso e ardilosa, e vejo o que o idiota nunca viu ou fingiu não ver. é no desamor que consigo tornar-me escritor. oxalá que todo amor me torne seca. onde quer que eu esteja." - epílogo fora de lugar (p. 11)

D. é "portadora da síndrome da imunodeficiência afetiva", contraída de um de seus maridos e adotando um tom de tragédia pode sacrificar a própria vida em nome de uma vingança como Anna Kariênina no clássico de Tolstói, uma das muitas referências literárias da obra que pode remeter ao mergulho existencial de Clarice Lispector em alguns trechos ou assumir uma falta de pudor frente aos padrões considerados normais da sociedade como em Hilda Hilst. Lembrando que todo este universo está na mente de Leonardo Valente, "Emma Bovary c'est moi!", citando Flaubert.

"minto tanto que às vezes não sei diferenciar a realidade do que inventei. sou um mentiroso de coisas fúteis e de coisas relevantes. minto para mim antes de mentir para qualquer outro, mas também minto para fora. dizem que é genético, herança de família, meu pai também mentia quase profissionalmente. contudo, sou melhor na arte de enganar do que meus parentes, pois desde muito cedo aprendi intuitivamente a revestir-me de credibilidade. não sei explicar, mas acreditam no que defendo até quando justifico o injustificável. minto tão bem que transformo as mentiras em verdade. nunca tive alergia a camarão, mas odeio aquele bicho com todas as minhas forças. odeio e tenho vergonha de dizer que não gosto, como pode alguém dada à boa cozinha ter ânsia de vômito apenas com o cheiro tenebroso daquela iguaria? [...]" (p. 33)

O livro nos faz pensar até que ponto, assim como D., podemos representar também uma grande farsa diante de nossas próprias contradições frente ao mundo das aparências. Entre os personagens apresentados, principalmente os cinco ex-maridos, todos chamados de Damião, ficamos na dúvida se não há apenas um que é o espelho da(o) protagonista ou mesmo do próprio autor. A epopeia de D. passa pelas etapas de poço, espelho e termina como gelo em uma criogenia obtida pelo papel que eterniza.

"sei agora que minha criogenia no papel é processo análogo ao do gelo. aqui, a escrita é quem eterniza, e ao eternizar congela, interrompe e torna tudo o que foi escrito apenas aquilo e o que se interpreta. mas para interromper, a escrita também cobra a vida, que passa a ser limitada a letras e sentidos que delas exalam. a escrita não admite dinâmica para fora dela, este é o preço que cobra para eternizar sentimentos, pensamentos e versões de mundo. e se a vida é muito mais narrativa do que a própria vida, a criogenia do papel é muito mais conservante do que a do gelo. conservar-me pela palavra, mais do que manter-me pela carne, é o que desejo. finalmente! mas continuarei tratando de gelo." (p. 55)

Uma obra experimental e corajosa que tem recebido elogiosas críticas e recomendações de escritores como Maria Valéria Rezende, assim como introdução de Pilar del Río. Termino com a citação ao próprio Leonardo Valente em determinado trecho do livro: "demônios começa(m) com D. deuses também."

Sobre o autor: Leonardo Valente nasceu em Niterói, Rio de Janeiro, em 1974. Tem três romances e uma antologia publicados, entre eles "Apoteose" (Mondrongo, 2018), "O beijo da Pombagira" (Mondrongo, 2019), finalista do Prêmio Rio de Literatura, e "Calote" (Mondrongo, 2020). Em 2017, foi um dos vencedores do Prêmio José de Alencar de melhor romance, da União Brasileira de Escritores, com um original ainda inédito. É um dos organizadores da coletânea "Antifascistas" (Mondrongo, 2020), que reuniu alguns dos mais importantes nomes da literatura lusófona, e tem textos ficcionais em diversas publicações. Jornalista e doutor em Ciência Política, é professor de Relações Internacionais da UFRJ.
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Elaine | @naneverso 02/11/2021

5 estrelas sem nem pestanejar
Quem me conhece, sabe: 5 estrelas é muito raro nas minhas avaliações. Por isso, gostaria de ressaltar aqui o quão incrível é esse livro, o quanto de sentimentos ele suscita, o quão real ele representa a cabeça de muitos criadores de arte, em especial a arte escrita. Na minha concepção, perfeito!
Cleziana 23/05/2022minha estante
Esse livro é simplesmente maravilhoso!




Patricia Milani 24/07/2022

Um livro diferentão, narrado através do fluxo de pensamentos do personagem principal que se identifica apenas como D. que em nenhum momento deixa claro seu gênero, aliás o personagem em si é uma contradição. A forma como o livro foi diagramado é parte fundamental na narrativa, os espaços em branco as letras maiúsculas e minúsculas conduzem a forma como quer ser lido/a.
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Marcelo 28/08/2021

Resenha publicada no Booksgram @cellobooks
Criogenia de D ? O manifesto pelos prazeres perdidos foi um livro que me surpreendeu.

Sua linguagem peculiar, com misto de poética e teatralidade, tons psicanalíticos e dilemas & vivências de todos nós, apresenta um cenário onde D transita pela identidade de gênero (ou pela ausência de identidade), mas ao mesmo tempo vai se construindo como individuo por meio de sua escrita.

D. é uma pessoa que não consegue viver só (precisa do outro como afirmação de existência, sejam amigos ou um dos seus 5 maridos ? até mesmo a possibilidade do sexto ou sétimo). Por outro lado a protagonista afirma ser portadora de "portadora da síndrome da imunodeficiência afetiva", contraída de um de seus maridos. Além disso, a protagonista se mostra ao leitor de forma crua e nua, expondo seus sentimentos mais ocultos e suas mentiras criadas para sua sobrevivência.

O que mais me encantou neste livro é a simplicidade (no sentido vivencial do termo) dos temas abordados, mas que em sí carregam complexidades de relações e formações psicológicas.

Uma obra experimental e corajosa que tem recebido elogiosas críticas e recomendações de escritores como Maria Valéria Rezende, assim como introdução de Pilar del Río.

De fato, Leonardo Valente me surpreendeu com este seu novo livro.
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Allan 02/11/2021

Eu me interessei por esse livro pela a proposta de um narrador gênero fluído que oscila entre o feminino e o masculino. O livro me surpreendeu pq é muito mais que isso. As resenhas do livro aqui na rede são ótimas e tem uns vídeos no YouTube explicando detalhamento as referências do texto.
Se você tá na dúvida, vai sem medo e se joga nessa leitura.
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Joyce 16/06/2021

Uma leitura provocante!
O livro é narrado por uma personagem que hora parece ser uma mulher é pra um homem? a personagem conta relatos da sua vida, com seus 6 maridos. É tudo muito reflexivo.
A forma como o autor utiliza as palavras como se fossem os sentimentos da personagem, foi surpreendente. Ele utiliza também a forma do texto, a pontuação e até o espaçamento da página para chamar a atenção do leitor para a narrativa de reflexão da história.
A minha percepção foi de que era a história de uma pessoa que estava cansada de se doar para o outro (no caso, para os 6 maridos) e não ser valorizada. A personagem é muito angustiada e solitária, e tive a impressão que ela trazia uma bagagem muito pesada da vida.
O final do livro é surpreendente mesmo.
É um livro ótimo, que nos traz muitas reflexões sobre a vida.
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Dani Pontes 28/09/2021

Pra sair da zona de conforto
Um livro pra te fazer sair da zona de conforto... um/a protagonista sem gênero que quer ser imortalizado/a por seu texto, daí a criogenia.
5 casamentos fracassados, 5 maridos, 5 histórias (será?!) e um futuro incerto...
O final?!?! Surpreendente!!

Aliás, o livro todo foi uma grata surpresa!! A prova de que a literatura brasileira tem mto a oferecer na atualidade!!
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leiturasdabiaprado 29/12/2021

criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos é um livro que vai te tirar da zona de conforto.
O incômodo começa logo pelo gênero da personagem, hora ela se identifica no feminino hora no masculino... e muitas vezes dentro da mesma frase!
O primeiro ponto que fica é: ela tem um gênero fluido, está em processo de transgenerização ou é apenas uma escolha para não termos pré-conceitos por conta do gênero?
O livro se passa todo em primeira pessoa, ela vai desnudando seu íntimo, relatando o inconfessável, até uma golden shower aparece, mas também temos confissões de farsas gastronômicas...
D. como ela se classifica também vai falar dos seus cinco ex-maridos e a busca/desejo pelo sexto e pelo sétimo (isso enquanto casada com o quinto ainda)... em relação aos maridos outras incógnitas aparecem, eles existem? São realmente cinco, seis ou apenas um, dois?!
A sensação de ler esse livro é a sensação de ler um diário escondido, como se aquelas revelações não nos fossem permitidas... e é justamente isso que instiga, que nos faz querer saber mais sobre D., sobre o outro (ou será a outra?)...
O livro nos prende do início ao fim... e o final é surpreendente e nos faz compreender o todo!
Um bom livro para ler, questionar e se surpreender!
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Cleziana 23/05/2022

Leitura obrigatória para quem estuda ou gosta de literatura
Sou muito criteriosa na hora de classificar livros, mas criogenia de D. merece cinco estrelas com louvor. É um romance inovador, denso porém não inacessível. Uma das narrativas mais bem construídas dos últimos tempos e uma das personagens mais representativas de nosso tempo. Entrou para o grupo do que temos de melhor em nossa literatura, tenho certeza de é uma obra que resistirá ao tempo e será referência. Leiam para ontem!
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Augusta Dias 23/05/2022

Literatura de alta estatura
Um dos livros mais marcantes da literatura brasileira contemporânea. Inovador em vários aspectos, mas muito mais que isso. Um romance que implode fórmulas e ao mesmo tempo consegue manter a coesão narrativa e seduzir o leitor. criogenia de D. toca em temas de nossos dias com a profundidade que poucos livros tocam, mas sem deixar claro todo o tempo que é ficção, e que ficção! A relação entre texto e página, aas referências ao modernismo e à clássicos importantes são deliciosos tira-gostos de uma obra que precisa ser lida e relida por todos que amam uma boa literatura. Recomendo com ênfase e senso de urgência!
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Filipe 06/07/2022

Uma obra que só pode ser apreciada por quem sentir algum desconforto ao ler um dos relatos nela presentes.

O/A personagem principal, D., me lembrou em alguns momentos José Costa, personagem-autor de Budapeste, escrito por Chico Buarque. É o tipo de pessoa que, por suas ações e convicções, poderia ser socialmente marginalizada como moralmente inferior, mas que consegue fazer o leitor se apaixonar de uma forma que eu não saberia explicar. Flamboyant, mentiroso, impostora.

No mais, é um privilégio ter sido aluno de Leonardo Valente, autor de um dos melhores livros que li nos últimos tempos.
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