Krishnamurti 27/05/2021
Criogenia de D. – ou manifesto pelos prazeres perdidos. Um livro para guardar na memória
Por Krishnamurti Góes dos Anjos (*)
Em meio à profusão de títulos que se vem publicando atualmente, depararmo-nos com o romance “Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos”, do jornalista, professor e escritor Leonardo Valente, é verdadeiramente um achado! A começar pela capa. Reprodução da tela do pintor Ismael Nery (1900-1934), “figuras em azul” que é obra de 1920 e nos inclina a pensar em múltiplas narrativas. Voltemos ao texto, e vejamos porque trata-se de obra muito singular. Antes vale lembrar o que significa Criogenia. A criogenia humana é aquela técnica que permite refrigerar corpos até a temperatura de -196º C, fazendo com que o processo de deterioração e envelhecimento pare. A grande expectativa no desenvolvimento de tal recurso (que já funciona como meio de preservação de embriões humanos e alguns poucos órgãos), é a possibilidade de manter cadáveres congelados anos a fio para ressuscitá-los um dia. Aí é que está o nó górdio que a ciência não decifra.
Muito bem; a personagem D. abre sua narrativa com uma incógnita digna de nota. Não assume definitivamente seu gênero. Revela-se ora como masculino, ora feminino. O que deseja, e afirma categoricamente, é tornar-se o que escreve e, congelar-se pela palavra para que a sua exposição sem limites seja a grande e permanente resposta ao abandono de seus ex-maridos.
5 maridos! E então temos o desfiar de um rosário, em que o enredo se desenrola, entremeado de profundas reflexões existenciais, sempre ligadas aos relacionamentos que lógico, não deram certo. Vejamos o currículo matrimonial, com as razões (sempre revisitadas ao longo da narrativa), das separações respectivas do(a) moço(a) de seus ex-maridos – uma confusão muito interessante essa, porque tão comum hoje em dia. Tanto faz se homem ou mulher. O pau que dá em Chico, dá em Francisco(a). Pauladas que acometem a todos, sem distinção de gênero: “o primeiro me deixou após ter alugado seu primeiro apartamento por conta própria, sem que eu fosse o fiador; o segundo após ter aprendido a usar talher de peixe e a ter encontrado alguém para o qual entendeu poder ensinar; o terceiro quando percebeu que não conseguiria ser monogâmico – o terceiro é bem irrelevante- ; o quarto assim que se deu conta de que não era protagonista do casal; e o quinto ainda está aí, morto vivo não sei até quando, até quando eu for útil, talvez.” p. 65.
D. se autodiagnostica portador(a) de síndrome da imunodeficiência afetiva (que contraiu do segundo marido), e também porque foi sistematicamente traído(a) por três anos a fio. Aprende na marra a ser infiel – mesmo em que pese a tal culpa cristã que fustiga seus neurônios –, ela(e) mete o pé na jaca: “anistiada, mergulhei-me no proibido do sexo impessoal, individualista e fordista, porém disfarçado de procura por um amor, pois assim funciona melhor. adoro chamar de amor um desconhecido, pedir em casamento alguém de quem sequer sei o sobrenome, evocar o encontro de almas gêmeas antes do sexo oral, fazer mil promessas e sumir imediatamente após o orgasmo, pois ainda estou casada.” p. 23. Está casada a essa altura ainda, com o quinto marido. Se lamuria a todo instante, e se sente vítima de injustiças e desamor: ... “porque das quatro vezes em que supostamente me casei, em todas a despedida não partiu de mim, não sou senhor do meu futuro amoroso, sou uma puta usada e descartada ao bel-prazer e de acordo com os interesses e desinteresses alheios. sou escravo das minhas limitações, do meu medo da solidão (como se todos não fôssemos totalmente sós ao nascer e ao morrer), e empregada dos meus maridos, sempre com medo da demissão.” p. 30. De reflexão em reflexão ela chega a algumas fulcrais que são como lampejos de consciência na narrativa. Amar lhe tem sido um eterno e pesado ciclo: “constitui-se, em verdade, de uma tentativa de compra daquilo que acho que não possuo. amo o que não sou para ser tudo o que acho que gosto e admiro; amo para ter o outro como apêndice ou anexo; procuro um relacionamento como ato expansionista de meu território”. (!). p. 67.
Não há saída para D. Se por um lado rendeu-se “à comodidade de considerar que já me conheço. como é bom ter a falsa sensação de autoconhecimento completo, de que nada mais é necessário garimpar e de que o desconhecido da vida acontece apenas do lado de fora, no campo externo ao corpo, que é o tudo menos eu.” p. 38., por outro lado, “tenho muitos pontos finais guardados em mim devido à incapacidade de usá-los, acumulo travessões engasgados na garganta, parênteses que ruminam em meu esôfago e um arsenal de exclamações e de interrogações armazenados em um porão empoeirado de meu espírito,” p. 64. É pura essência fraudulenta, reconhece a certa altura.
Leonardo Valente arma em sua narrativa todo um jogo de cena que inclui efeitos gráficos muito bem urdidos, liberto de convenções formais mas que não perde em momento algum o fio narrativo. Tudo se encaixa perfeitamente e foi muito bem pensado, a começar pelo “epílogo fora do lugar” que abre a narrativa. O objeto livro que o leitor tem em mãos, apela para a relação entre palavra e página, joga com espaços em branco, com a variação do tamanho das letras, com a utilização de trechos escritos em maiúsculas e outros em estruturação formal de poesia e subverte até a pontuação.
Mas que mistério desgraçado é esse de D.? D de Deus, D do diabo? Não se sabe, cada leitor encontrará sua resposta, embora estejamos inclinados a perceber influências diabólicas sobre alguém que escreve: “pelo menos uma vez por ano preciso: - viajar para uma praia do Nordeste com um amante de pau grande ou com um marido ou namorado. se necessário, banco a viagem: se for marido ou namorado, é aberta a concessão ao pau pequeno, também banco os passeios.” p. 57. Por outro lado deseja na mesma lista que escreveu isto: simplesmente “encontrar “uma alma gêmea”... Uma tristeza de indivíduo que acredita que a memória humana pode ser servida à la carte (ou seja, onde o cliente escolhe o que comer)... Adora cozinhar, cozinha e congela os alimentos – todos industrializados mas com sabor disfarçado – , daí talvez a associação com a criogenia existencial. Segue a vida preenchendo vazios com outros vazios. Mas eis que: “o quinto foi embora. meu Deus, meu Deus, que dor. tudo de novo. que dor de dente. volta, Damião.” p. 84. Começa novo ciclo. Será que o sexto vai chegar? Vale a pena, muito, conferir o desfecho.
Positivamente a narrativa toca em prementes dilemas de nossa contemporaneidade tais como o alerta que faz quanto as armadilhas da linguagem, para as quais deveremos estar atentos. Trecho: “minto tanto que às vezes não sei diferenciar a realidade do que inventei. sou um mentiroso de coisas fúteis e de coisas relevantes. minto para mim antes de mentir para qualquer outro, mas também minto para fora.” Interessante notar que todos os ex-maridos de D. eram desconhecidos que apareceram na TV – veja-se a força metafórica que isto tem. Censura com veemência a sociedade patriarcal que baliza nossas relações, e que atinge inclusive os homens pelo que tem de negativo quanto a regras e preconceitos inumanos. E finalmente, não se pode deixar de referir a intertextualidade que estabelece com os romances Anna Karenina de Liev Tolstói (que obra de 1877) e Madame Bovary de Gustave Flaubert (publicado em 1856). Ambos retratam personagens femininas que notadamente foram presas e vítimas da sociedade em que viveram. Ambas se suicidam. Freud identifica nesses romances, que mecanismos de autodestruição foram fortemente ativados, já que a sensação de vazio resulta da depressão e o desejo de “sensações novas e perigosas”. A traição matrimonial, segundo ele, não é mais do que a busca da morte perdida, um desejo de morte não elaborado, o novo entusiasmo provisório antes da próxima desilusão, já que o inferno são os outros. Emma Bovary vai deixar de “esperar todos os dias alguma coisa que nunca vem” para atingir a felicidade eterna e Anna Karenina mimetiza o suicídio de um operário atirando-se para a linha férrea, suicídio esse que ocorreu no dia em que conheceu o futuro amante na estação ferroviária. Chegaram, assim, as duas ao destino inconscientemente desejado. Já D. não se mata de forma alguma, nem cogita disto. Mas esta pronta(o) a atirar o seu par infiel na frente da primeira locomotiva que aparecer.
Muito bom. A escritora Maria Valéria Rezende escreveu sobre este livro: “A leitura mais espantosa, provocativa e mais completa como testemunho desse momento, um livro com valor histórico. Uma das coisas mais geniais é a oscilação de gênero de D., personagem que reflete sobre o caos terrível que atravessa transversalmente todos no mundo de hoje. Uma narrativa repleta de referências e perfeitamente integrada, mas que consegue descrever a desintegração pela qual estamos passando. Genial.” Acrescentamos de nossa parte, que é obra da melhor qualidade literária, porque entre tantos e tamanhos recursos de estilo com que o autor nos brinda, é portadora de profunda mensagem humana para nossos tempos de tanta desilusão e de perda da fé em nossos destinos.
Alguém Escreveu também (não me lembro quem): “Não, não é solução, atirar-se debaixo de um trem como a Anna de Tolstói, nem sorver o arsênico de Madame Bovary antes de despir o manto que cobre a cabeça e começar a atuar. Deve haver outro modo de ser. Outro modo de ser humano e livre”. A concepção de um(a) personagem como D. parece indicar-nos que também não é solução deixarmo-nos levar pelo que nossa sociedade hedonista vem empurrando goela abaixo como receitinhas de comidas semiprontas e industrializadas por exemplo, ou esse despautério de relações ‘amorosas’, à torto e à direito. Uma sociedade que se ocupa quase que exclusivamente daquele antigo dito popular de “muita fome, muito amor, a eterna história da vida”, e que sequer se preocupa em perpetuar a espécie. Não é casual que quase não haja menção a desejar ter filhos! O cúmulo a que chegamos, o de aspirar perpetuar-se egoisticamente a si mesmo via criogenia. Seguimos afundando os pezinhos na lama da ilusão.
Livro: Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos. Romance de Leonardo Valente. Editora Mondrongo – Itabuna – Bahia 2021, 130p.
ISBN 978-65-86124-50-7
Link para compra e pronta entrega:
https://www.editoramondrongo.com.br/produto/232479/criogenia-de-d
(*) Krishnamurti Góes dos Anjos é escritor, pesquisador e crítico literário. Tem publicados os livros: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos, Doze Contos & meio Poema e À flor da pele – Contos. Participou de 28 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Há textos seus publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último romance pela editora portuguesa Chiado – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 300 obras de literatura brasileira contemporânea publicadas em diversos jornais, revistas e sites literários.