Ana Sá 29/04/2024
As travestis e as infâncias
Neste livro, a escritora argentina Camila Sosa Villada nos entrega uma espécie de autoficção que tem como eixo as experiências e os laços estabelecidos entre travestis que trabalham no Parque Sarmiento, no coração de Córdoba. As histórias dessas "irmãs magníficas" com a prostituição mesclam-se às memórias da narradora Camila sobre a descoberta de sua própria identidade de gênero e sexualidade. A meu ver, o diamante da narrativa é anunciado pelo acontecimento-chave dos capítulos iniciais: Tia Encarna, figura acolhedora que deixa sua pensão sempre aberta às travestis da região, adota (informal e corajosamente) um bebê que fora abandonado no Parque Sarmiento. O nome desta criança não poderia ser mais bonito: "O Brilho dos Olhos".
A questão das infâncias, no plural, realmente me chamou a atenção. A narradora sofre em sua infância e adolescência por não se adequar aos padrões de gênero... Tia Encarna enfrentará uma dura batalha para criar Brilho justamente porque a sociedade não consegue associar a "pureza" da infância às travestis... E eu, quando menos esperava, também me vi revisitando minha infância! Rogéria, Vera Verão, Roberta Close... Como as travestis ou mulheres trans fizeram parte da criança que eu fui?
Silvio Santos, com seus erros e acertos, foi o responsável por me apresentar ao mundo das travestis. No famoso "Show de Calouros", lá estavam elas, lindas e exuberantes, dublando e dançando. Eu assistia ao programa com a minha mãe, que adorava essas performances, e me lembro muito bem de o Silvio se referir a elas como "artistas". Minha mãe não era o que poderíamos chamar de "progressista", mas ela adorava e compartilhava comigo o mundo das travestis tal qual ele aparecia no SBT da década de 1990. Quando a Rogéria ("a travesti da família brasileira") abria a boca para falar, a nossa casa ficava um silêncio. Com a Vera Verão na "Praça é Nossa" (com todos os problemas que hoje podemos identificar no humor da época) era o contrário, uma chuva de gargalhadas! E tinha ainda a Roberta Close, mulher trans, sobre quem a minha mãe não cansava de repetir "nossa, ela é linda!". Artistas, bonitas, engraçadas, inteligentes. Parece fantasioso demais, mas pra uma criança que assistia àqueles programas ao lado de uma mãe tão entusiasta de tais figuras, ficava uma imagem ingenuamente positiva das travestis. Isso, claro, até o dia em que a travesti saiu da TV...
Minha mãe me buscava no fim do dia na escolinha e a gente voltava a pé pra casa. Como ela precisava passar vez ou outra numa quitanda ou num mercado (que, na época, aceitavam Tele Senas vencidas como pagamento, vejam só!), acontecia de anoitecer e a gente estar na rua. Certo dia, ela mudou o caminho por alguma razão e eis que no meio do trajeto, numa esquina escura, eu começo a avistar algumas pessoas paradas... "Mãe, mãe... São as travestis, são as travestis!!", disse eu fascinada e feliz! De imediato, minha mãe apertou o meu braço, abaixou a cabeça e disse "Fica quieta, menina, anda logo e fica quieta!". Eu e as travestis percebemos que minha mãe estava com medo. Da minha parte, foi uma confusão só... Na minha cabeça, eu só me perguntava: "Ter medo de artistas tão bonitas, por quê?". Da parte das travestis, houve uma generosidade de dizerem algo do tipo: "Boa noite, bonitinha! Boa noite, mamãe, pode relaxar!". O resto do caminho fizemos em silêncio. Fiquei sem entender por que na TV elas eram nossas amigas, mas nas ruas se tornavam uma ameaça estrategicamente ocultada na penumbra. Uma ameaça igual às Irmãs Magníficas de Córdoba...
"Os jornais e a televisão diziam que, com a nova iluminação do Parque, acabariam a delinquência e a prostituição. Para mim sempre pareceu que nos viam como baratas: bastou acender a luz para que todas saíssemos correndo".
O livro de Camila Sosa Villada me fez entender com profundidade o apertão que levei da minha mãe naquela noite, me fez entender por que não é suposto que uma criança expresse "O Brilho dos Olhos" ao se deparar com uma travesti. Camila, autora e narradora, se mostra atenta às minúcias sociais e afetivas do processo que varre as travestis pros cantos escuros das cidades. Essas travestis que já foram crianças, essas travestis que cuidam, essas travestis que amam... Mas essas travestis que recorrente e violentamente são impedidas ou até proibidas de viverem ou sentirem tudo isso.
Apesar de ter sido impactada pela obra, não dei uma nota de leitura muito alta porque a prosa poética de Camila me cansou um pouco (ando cansada desse tipo de escrita no geral, virou questão de gosto mesmo), e também porque, pontualmente, senti falta de uma melhor articulação nas idas e vindas das narrativas do passado. Feitas essas ressalvas pessoais sobre o estilo, posso dizer que guardarei esta leitura num lugar muito especial dentro de mim, tanto pela boa construção de suas personagens quanto pela originalidade do enredo.
"Por maioria, escolhemos chamá-lo de O Brilho dos Olhos. E convinha muito bem chamá-lo assim, porque Tia Encarna e todas nós, na verdade, recuperávamos o brilho no olhar quando estávamos com ele".