Maria19421 22/01/2024
A solidão de existir em um corpo feminino
"É uma cena sem nome, a vida e a morte ao mesmo tempo. Uma cena de sacrifício."
Ufa. Depois de engolir o livro todo em uma tacada, sinto que finalmente consigo parar de prender minha respiração e respirar, não aliviada, mas extasiada! Ainda não tive tempo para digerir totalmente esse livro, mas estou tão tocada e envolvida com o relato que não consigo esperar para registrar todas as minhas impressões sobre a leitura.
Em primeiro lugar, é preciso pontuar quanta coragem uma mulher deve ter para reviver -- de forma detalhada e fidedigna aos seus sentimentos da época -- um Acontecimento de tamanha dimensão. Um aborto. E todos os sentimentos que precedem e sucedem o ato. A dor de existir em um organismo que gera um embrião indesejado, a angústia de não poder fazer nada a respeito, a impotência frente ao seu próprio corpo. Apesar de nunca ter ficado grávida, me identifiquei muito com a dor de Annie, com seu desespero; acredito que todas as mulheres em algum momento já se viram a mercê de sua própria sexualidade, de sua própria condição de pessoa reduzida ao seu sistema reprodutivo.
O livro, apesar de narrar fatos transcorridos na França de 1963, incitam a reflexão a respeito de questões muito atuais, como a desigualdade de gênero em relação à sexualidade, as desigualdade de classe que permeiam o cotidiano e, sobretudo, a violência que se assoma aos corpos femininos, em todas as esferas. É muito difícil ler sobre todas as violências que a autora sofre ao longo da narrativa, sabendo muito bem que esse seria o mesmo tratamento que eu receberia se estivesse em sua posição. No momento em que Annie precisava desesperadamente de amparo, tudo que ela encontrou nas pessoas foi recusa, olhares sarcásticos e nenhuma compaixão.
No fim, acho que o que mais me dói nesse livro é receber a confirmação de que "ser mulher" é uma experiência dolorosa e, acima de tudo, solitária. Muito solitária. Por isso, agradeço a autora pela coragem e força em contar seu Acontecimento, é um alento saber que não estamos sozinhas, é possível sobreviver e continuar.
"O verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros."