carlosmanoelt 14/05/2024
?É uma cena sem nome, a vida e a morte ao mesmo tempo.?
?Eliminei a única culpa que senti a respeito desse acontecimento ? que ele tenha acontecido comigo e que eu não tenha feito nada dele. Como um dom recebido e desperdiçado. Pois, para além de todas as razões sociais e psicológicas que pude encontrar naquilo que vivi, existe uma da qual estou mais certa do que tudo: as coisas aconteceram comigo para que eu as conte. E o verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros.?
?O Acontecimento? parte de maneira nada linear de um lugar de observação das relações que as mulheres mantêm sobre si mesmas para analisar a dimensão de poder que a escritora constrói com seu próprio texto ? pois essa é a identidade singular de Annie Ernaux, muito influenciada pelas suas formadoras francesas: observar a si mesma para melhor observar o mundo ao seu redor.
A consciência direta disso vem junto das suas tomadas de conclusão mais profundas. No nível radical que o texto de Ernaux atinge com ?O Acontecimento?, a autora não só relembra com criticidade a terrível prática da Arte de seguir o hábito da sociedade de não ver valor de representação e legitimidade em determinadas histórias, como coloca toda a relevância de seu ofício justamente nesse lugar. A personagem principal é ela mesma, uma jovem em um processo de exercício profundo de suas liberdades, que vive em um embate com as restrições impostas a ela no mundo externo. Assim, Annie toma como trabalho o reportar essa vida de uma mulher que não corresponde aos padrões socialmente impostos ao seu gênero, desde suas motivações até seus arrependimentos.
Nenhum símbolo pode dizer mais sobre emancipação e liberdade do que o que marca a narrativa de ?O Acontecimento?. Muito mais do que um processo concreto que confere a uma mulher o poder sobre o seu próprio corpo, a autora insere mais uma camada à sua mistura de biografia, história e sociologia, entendo o aborto a partir de uma ótica quase filosófica: uma experiência plenamente humana, que permite acesso ao ciclo e aos extremos completo da vida, desde seu início, até o seu fim.
Entre aspirações, significações e conclusões tão amplas sobre a sua experiência, a autora não deixa de sentir o que lhe foi particularmente marcante daquela época: a solidão e o desamparo, em nível legal, social, institucional e cultural. O choque vem da simples dificuldade da jovem Annie em enxergar as diferenças de gênero através de seu olhar tão livre e independente, que não vê outro lugar para si mesma se não aquele de completa igualdade com os demais. Nada disso, no entanto, define O Acontecimento, uma vez que a obra não existe de maneira a transformar a vida de Annie Ernaux em ? literalmente ? um livro aberto.
Inevitavelmente, é o que acontece, mas seus relatos íntimos, reflexões metalinguísticas e críticas sociais estão na obra com um objetivo bem definido: destacar a maneira como, além de tudo, essa experiência universal de desapropriação de si mesma causa uma uniformização violenta das nossas identidades ? o que vai na direção contrária do nosso movimento de emancipação individual e coletiva. No mundo em que vivemos, nenhuma história sobre aborto é só uma história sobre aborto, e nenhuma experiência de violência de gênero é individualizada em seu alvo da vez. E as palavras de Annie Ernaux parecem ser as únicas possíveis para compreender que ?O Acontecimento? dela nunca foi ? e nunca será ? só dela.