Kleber 23/02/2022
O Mundinho de Domingos
A história é ambientalizada no Estado de São Paulo em plena Pandemia e nos conta sobre a personagem Beatriz, mulher de meia idade, divorciada e com dois filhos. Desesperada com a evolução da doença em sua cidade, resolve se isolar na área rural, num sítio alugado até que o pior passe. E lá encontra Mundinho e Domingos, duas amizades que mudarão completamente sua rotina e a forma com que enxerga a vida.
A partir daqui tem spoiler, recomendo que pare, caso se importe!
A autora nos mostra Beatriz a "protagonista" em fuga com seus dois filhos, meros figurantes, apesar de algumas passagens importantes, o livro não se aprofunda em descrevê-los mais do que o necessário. Ela é obcecada pelo cuidado, muitas vezes, quase um transtorno compulsivo com higienização. (em muitos momentos pensei: "ela é mais louca do que eu!").
O ritmo escolhido para narrativa é lento, nada contra. Não tenho problemas, na verdade em muitos momentos para aqueles que gostam de imaginar o ambiente enquanto lêem, adorarão a riqueza de detalhes com que se descreve aqui. Logo nos são apresentados Mundinho e Domingos, que aviso desde já que, é o ponto alto desse livro e o que me faria indicar para os leitores.
Como falei acima, a narrativa é lenta nas passagens de Beatriz, usando de viagens temporais para nos fazer ganhar empatia pela personagem e nos mostrar as características da protagonista. Aqui ela é uma típica mulher moderna tanto nos aspectos positivos quanto negativos, isto é, a tradicional mulher de sucesso, de boa carreira profissional, racional, sempre bem planejada, que como contraponto trata com descaso os cuidados com os filhos, com o marido (motivo pelo qual se separara) e consigo mesma.
O ritmo demasiado não me incomoda até o momento em que a história ganha os seus verdadeiros protagonistas. Sério!!!! É inacreditável como o livro se modifica e ganha estrutura a medida que vamos conhecendo Mundinho e Domingos.
Gradualmente nos são apresentados e naturalmente eu fui me apaixonando, o ritmo deixa de ser lento, a riqueza nos detalhes ainda estão lá, porém tudo é muito bem calculado, e de repente aquela imagem que eu tinha da forma de se contar a história de Beatriz, se alterou. De repente percebi que na verdade a autora peca fortemente com a protagonista quanto a sua narrativa.
Todavia, ainda falando sobre Domingos e Mundinho, que vale se falar, e falar, e falar... Ao decorrer são trabalhados três problemáticas, o preconceito social uma vez que Domingos é filho do empregado, preconceito racial visto que Domingos é negro e o amor gay, sim foi uma surpresa quando ao longo do livro Mundinho nos conta o início do amor por Domingos.
E antes que algum desafortunado pense "lá vem a lacração". Calma! Tudo aqui é muito bem escrito, suavizado, purificado. E não a toa eleva o livro à plenitude!
Justamente por isso, quando o livro retorna a história de Beatriz, a sensação de queda é evidente. A autora tenta salvar realizando mais algumas passagens nostálgicas para nos familiarizarmos com a personagem, e aí acaba cometendo mais um erro, um tanto corriqueiro no livro. Não sou contrário a viagens ao passado para nos contar algo importante ou nos cativar por um determinado personagem, Machado de Assis, é um exemplo do quanto isso é agradável quando bem feito. Mas aqui a viagem não só responde perguntas pequenas ou sem tanta importância, como também quando feita ao fim do livro revela um erro claro de desenvolvimento de Beatriz, sem falar que torna estes capítulos cansativos.
O Livro se salva ao dar um final previsível, não que previsível seja bastante qualitativo, mas ainda é melhor do que do nada se construísse uma utopia dentro daquele ambiente, o final é bem pé no chão, e nos ensina que a vida é oscilante demais para se planejar tudo, que a existência não é uma bússola sempre mirando para um norte fixo, que é importante termos objetivos mas as coisas fogem das nossas mão as vezes e não tem nada de mais porque isso é a vida!
Para quem gosta de um livro mais realístico, é um prato cheio as narrativas de Beatriz, apesar do ritmo mais demasiado. No entanto, se você gosta mais de um livro que brinque com o imaginário, mais voltado ao romantismo de uma boa fantasia de amor, seu coração será preenchido pelos capítulos de Domingos e Mundinho e talvez você até sinta um pouco de cansaço com a Beatriz.
Portanto, A Lua no Terreiro é um livro onde os coadjuvantes roubam a cena e nos levam a um mundo recheado de verdades que costumeiramente adoramos negar. Preconceitos em diversas camadas, uma mãe que justifica o abandono dos filhos e do casamento com a velha desculpa do "é graças ao meu trabalho que eu dou o conforto que eles têm", como se conforto compensasse amor, tudo isso no meio de uma pandemia, tudo isso no "Mundinho de Domingos" com a participação da protagonista Beatriz.