André Foltran 17/03/2019Onde começa o fantásticoAlguém já deve ter decodificado a forma particular com que Cortázar fazia literatura. Em seus escritos parece haver sempre um momento em que o narrador nos arranca de um terreno seguro para os domínios do fantástico. Onde isso acontece, se no primeiro parágrafo ou no derradeiro, se no meio do conto ou no meio de uma frase qualquer, é sempre difícil, por vezes impossível precisar.
O último livro que li do mestre argentino, As armas secretas, contém cinco de suas pérolas, que, como de praxe, chegam ao fantástico partindo do cotidiano mais banal. Às vezes o fantástico vem junto de uma carta da mamãe, que altera a ordem das coisas, modifica a realidade. O simples ato de fotografar, em "As babas do diabo", torna-se ação perigosa, talvez a mais perigosa já tencionada pelo homem, afinal que ousadia captar o agora, cristalizar o tempo, sintetizar um momento (como diz Baco: "fotografar em segurança é tão difícil..."). Em "Os bons serviços", você ficaria surpreso com o que uma empregada é capaz de pensar, com os serviços que pode oferecer. E como encarar o tempo da mesma forma após a leitura do espetacular "O perseguidor"?
Lendo A estranha máquina extraviada, de José J. Veiga, encontrei algo parecido com a mágica cortazariana. Em Veiga, no entanto, parece fácil precisar o momento em que o fantástico se instaura: é já no primeiro parágrafo. "O cachorro canibal", por exemplo, começa assim:
"Percebia-se que era um cachorro por causa do rabo metido entre as pernas, quase colado na barriga, e também um pouco por causa dos olhos, de uma tristeza tão funda que só podiam ser olhos de cachorro escorraçado. As patas não se firmavam no chão como as de qualquer cachorro razoavelmente seguro de si; pisavam a medo, apalpando, experimentando. (Depois se soube que ele tinha perdido os cascos pelos caminhos, ficando as plantas em carne viva.)" (p. 84).
Veiga, ao mesmo tempo em que introduz o cachorro, põe em dúvida sua espécie, para jamais solucionar o caso. Seus contos parecem sempre começar muito depois do início e terminar um pouco antes do fim, de modo que saímos sempre perturbados por uma enorme ausência. Esses finais abruptos, quase sempre surpreendentes, tendem a reverberar por muito tempo. Você chega à última frase e pensa (alguns gritam): não pode acabar assim. Retorna alguns parágrafos, incrédulo. Mas é isso mesmo que você está lendo. Terá de conviver com esse desfecho, esse grito, essa eterna dúvida.
A impressão é de estar lendo uma literatura de mestre em que nenhuma palavra sobra e mesmo as muitas que faltam só aprofundam a trama. Uma literatura estranha, permeada de estranhos seres, "alguns conhecidos, outros inventados, deduzidos dos barulhos que vinham da mata" (p. 53). Literatura semelhante àquela máquina extraviada, abandonada em uma cidadezinha do interior e da qual não se espera nada em particular, "basta que ela fique onde está, nos alegrando, nos inspirando, nos consolando" (p. 94). Aquela insólita máquina que, aparentemente desligada, talvez já estivesse em funcionamento desde quando se extraviou -- se é que se extraviou.