Thales.Santos 29/07/2023
Isso aqui não é true crime...
Li esse livro ano passado, mas resolvi escrever só agora devido a umas resenhas escritas recentemente que eu acho, no mínimo, um tanto quanto descabida. Explico melhor adiante
A começar, Matheus Moura é um querido amigo íntimo meu. Inclusive, recebi este livro diretamente de suas mãos como presente. Nossa amizade se inicia pelo fato de compartilharmos uma paixão em comum: os estudos sobre segurança pública. Eu estava no segundo período do curso de Segurança Pública e Social na UFF, quando em uma ocupação realizada pelo MLB (Movimento de Lutas nos Bairros, Vila e Favelas), nos esbarramos e começamos a conversar sobre polícia e tínhamos uma visão bem similar sobre o tema.
O que quero dizer com isso tudo é que por conta dessa nossa amizade, consegui acessar certas partes do livro justamente por conhecer de perto a visão do autor. Bom, essa investigação foi feita quando o Matheus estava concluindo o curso de Jornalismo e é fato que a formação do jornalista em áreas como sociologia, uma das grandes áreas do autor, não é tão forte como em outros cursos da ciências sociais, é claro. Então, a primeira coisa que se deve ter em mente em relação a esse livro, é que ele não é uma mera investigação true crime, que irá focar nas ações dos criminosos e todo aquele sensacionalismo característico do gênero e eu acho que é daí que reside a grande frustração por parte de algumas pessoas, que começaram a ler esse livro esperando isso. E muito provavelmente chegaram aqui através de indicações de influencers famosos nesse meio do mundo true crime que indicaram o livro do Matheus, eu mesmo acompanhei alguns.
É justamente por esse fato que em muitas partes o autor passa mais tempo descrevendo personagens que estão ali orbitando o Coronel e até mesmo a cidade do que propriamente o crime. O que se está em jogo é um olhar sociológico dessa cidade tão singular e contraditória que é o Rio de Janeiro: ao mesmo tempo que contém em si tanta vida e beleza, é ao mesmo tempo a que abriga a PMERJ, essa máquina de matar preto, pobre e favelado. De toda a PM espalhada pelos estados, é a PMERJ que mais mata e fere.
E é interessante que essa análise geográfica seja feito justamente por uma pessoa que venha de Santa Catarina. Seu olhar aguçado, somado ao fato de por ser um outsider (nos termos de Howard Becker) ele consegue desnaturalizar aquilo que pra nós, cariocas e fluminenses, é tão normal para nos mostrar essa enorme compartimentalização que há: percebam a descrição inicial do bairro da Tijuca em contraposição com o complexo da maré. A geografia descrita entrega o cruel tratamento que o poder público decidiu relegar à sua população negra.
Outro aspecto a ser considerado é a relação da polícia com a política. O que grande parte das pessoas ignoram, seja por negligência ou por mau-caratismo, é a relação simbiótica entre eles. Ora, vemos em 2018 um candidato que não tinha nem 1% da intenção de votos ser eleito governador com um discurso pautado na necessidade de uma polícia violenta, pois só o uso de todos os meios necessários, traduzindo: necessidade de uma maior letalidade, que seria possível acabar ou reduzir o crime. O que vimos, na verdade, foi uma intensificação no genocídio negro, que no Rio de Janeiro sempre existiu, mas que ao longo dos últimos anos ganhou cada vez mais roupagens. Dessa forma, quanto mais alimentado é o sentimento de insegurança na população, mais é esperado dos mesmo uma resposta e soluções rápidas, que na prática vai significar um cheque em branco na mão da polícia que terá seu poder ampliado irrestritamente. Acontece que isso é apenas um discurso puramente populista. Em um ano de governo Cláudio Castro, tivemos três das cinco maiores chacinas da história do estado, que morreram ao mínimo 80 pessoas (lidas como traficantes e criminosos). A pergunta que fica: você, que está lendo essa imensa resenha, se sentiu mais seguro depois disso? Se sente mais confiante de andar na rua a noite? Todo esse extermínio, no final, adianta de que? Te respondo: nada além de de uma política para justificar o extermínio...
Trouxe isso justamente para uma reflexão: se isso ocorre hoje, em um momento onde o debate dos direitos humanos está bem mais avançado e difundido, imagina o que não era nesse período entre e pós ditadura? É assim que Matheus vai pincelando as tentativas inúteis de certas figuras ditas como progressistas de tentarem limpar a imagem da polícia. Chavarry, muito sagaz, irá se aproveitar dessa ala e vai colar com essa galera para tentar sempre melhorar sua imagem, promoções etc. Por fim, fica evidente que por mais que haja nomes de peso nessa tentativa de reformar a PM, ela jamais deixará de ser essa máquina assassina. Ela ser assim não é um erro de comando ou por falhas individuais... Ela é assim pois foi criada para desempenhar esse papel.
E é interessante notar o papel de influência e peso que a polícia exerce na sociedade que até mesmo um governo de um homem como Brizola, que pra mim um dos maiores políticos do século passado, vai precisar se submeter aos caprichos e demandas dessa corporação.
Por fim, como sempre, resta ao povo se organizar e lutar pelas suas demandas, A descrição da atuação da associação de moradores é só mais um reflexo do papel fundamental que os movimentos sociais desempenham no Brasil.
Acho que alguns pontos que mais são passíveis de críticas seriam a utilização dessa narrativa "zig-zag" que às vezes deixa o texto um pouco confuso de se situar, porque o autor tenta o tempo todo vincular a história do Chavarry ao contexto socio-político da época que se encontrava em um período extremamente confuso e conturbado, trazendo uma natural dificuldade de fazer essa costura com a narrativa. Eu particularmente acho que foi feito de forma criativa, mas é de se pensar outras formas para se conseguir isso, afinal, em algumas vezes só no final do cap que você passava a entender a razão daquilo ali ser descrito e qual sua ligação com o Chavarry, demorando a engatar.
Há mais coisas a serem desdobradas, mas irei finalizar porque já está muito extenso. Como disse no início, conheço o autor intimamente e obviamente tenho noção que isso é uma singularidade e que não posso esperar que os leitores cheguem a essas conclusões, afinal nem todo mundo vai poder mandar um zap pra ele no meio da tarde para perguntar como ele conseguiu acessar aquela informação, qual o motivo dele descrever aquilo etc. Mas achei interessante de compartilhar com vocês esse lugar.
Por fim, deixo aqui também um link de um ensaio em que eu e Matheus escrevemos para o Le Monde Diplomatique falando sobre como a polícia utiliza a Fé Pública para usos pessoais:
https://diplomatique.org.br/como-a-policia-utiliza-a-fe-publica-para-matar-e-lucrar/