Toca do Coelho 29/09/2020
Uma mistura linguística de não-ditos
“(...) A ciência adora se desfazer de velhas crenças, mas não pode matá-las.”
Se eu pudesse sintetizar A noite tem mil olhos em uma única frase, seria essa da página 8, mais um aviso ao leitor que ao personagem que a escuta na história. O conto curto escrito por Alec Silva é ambientado em um futuro distópico onde o nordeste se separou do restante do Brasil e bem no interior desse novo país velho e novo se encontram, resultando numa carnificina que poderia ser evitada caso existisse uma única bússola moral: o respeito.
É um conto fácil e rápido de ser lido, nem por tal menos importante ou bem feito, os personagens são bem amarrados a trama e essa não tem nada de simples, o mais importante na história está no não-dito que levou aos acontecimentos na região interiorana desse nordeste novo, onde todos os cursos levaram a noite fatídica no bar de estrada de Jeremias.
Quem for ler – e for do nordeste – vai se deparar com situações bem familiares, tanta na construção dos personagens quanto na história, pois esta é sobre aparições e crendices, quem é do interior sabe que a gente se junta na porta do bar – frequentado pela família toda – pra contar o que viu e o que deixou de ver. A figura clássica do conspiracionista é dada a Estevão, caminhoneiro que vê tudo e sabe tudo e seu comprade Jeremias, que dúvida de tudo e não acredita em nada é o descrente, os dois são colocados dentro de uma noite de sangue com a chegada de sudestinos arrogantes que não escutam o aviso do velho Estevão, os forasteiros que fazem merda.
E onde ta o não-dito? Ora, não por acaso os sudestinos são os causadores da desgraça anunciada, a escolha deles não foi aleatória, se este é um conto sobre o nordeste que melhor vilão que o sudeste? Aqui representado por pessoas que desconhecendo e desrespeitando a cultura local precisam enfrentar a ira dos protetores da região, se não fossem arrogantes acreditando que tecnologia e uma superioridade (juram eles) é o suficiente para enfrentar as lendas locais, tudo poderia ter sido evitado.
As palavras de Jeremias são outro anuncio do que aconteceria:
“(...) o desespero dos sudestinos e sulistas com a fome e o caos econômico...”
Um ponto que muito me chamou atenção foi a independência do nordeste ter acontecido pelas mãos dos coronéis e pensando no cenário político faz muito sentido. O nordeste é majoritariamente agrário e as antigas famílias oligárquicas ainda detêm um grande poder político, o que também explica porque as capitais funcionam como pólos industriais, mas os interiores ficam desprotegidos. O autor amarrou muito bem a dinâmica do passado e futuro ao colocar o nordeste avançando sob as mãos das mesmas famílias, o que tem de não-dito aqui? Os coronéis não se importam com o povo, prejudicar outras regiões e pessoas em detrimento da que governa tem como objetivo apenas o crescimento econômico deles.
Na estrutura narrativa o autor faz uso de certa exposição para explicar a situação acima, não acredito que isso prejudique a leitura, encaro mais como um recurso para não afastar leitores mais iniciantes acostumados à superexposição de assuntos e que poderiam sentir certa incompletude ao ler um conto menos detalhado no seu cenário de base. Linguisticamente me diverti muito na história, como Alec é nordestino – esqueci de perguntar o estado a ele – sabe bem como a estrutura da nossa fala é estigmatizada e, se por um lado seria bom ter frases com idioletos bem marcados, por outro poderia cair na fetichização da fala, então o autor recorre a estruturas sintáticas regionais.
Vocativo no final da frase e a ausência de marcadores na voz que indique uma pergunta, pois a retórica já está implícita:
“ – Toda semana essa mesma história, homem? Não cansa...” (pág. 6)
Variação regional marcada pela subtração do m que torna o e uma semivogal i:
“(...)homi (...) mas eu vi... com esses olhos aqui, que agora estão vendo você... eu vi.”
No final dessa frase além da estrutura sintática também temos a repetição do pronome pessoal reto que marca a norma padrão de uso do português brasileiro já que não somos uma língua de sujeito oculto, chocando a gramática normativa irreal.
Eu poderia discorrer durante várias páginas sobre a linguística presente no conto de Alec, mas encerro aqui dizendo que é uma obra é agradável e que merece mais de uma olhadela ao ser lida, analise as conversas de Estevão e Jeremias, preste atenção em como o autor tece a crítica as atitudes sudestinas sobre o nordeste e principalmente, não cruze o caminho de um capelobo.