Djeison.Hoerlle 04/06/2023
Fior, eu (acho que) entendi.
Desde que foi lançado, Celestia é referido por boa parte dos cronistas da gibisfera brasileira como um quadrinho cuja interpretação não se basta em uma única leitura. Para falar a verdade, isso já vem desde antes do lançamento, já que no próprio vídeo de anúncio da pré-venda no canal da Pipoca e Nanquim, seus editores se referem a ele como um quadrinho denso e que exige a revisita para compreensão de suas camadas mais profundas. Praticamente todas as resenhas com as quais me deparei em outros sites reiteram esta afirmação.
Mas é aí que reside o problema.
Apesar de constantemente reafirmada a necessidade de uma nova leitura, ainda assim não parece haver um único post na internet que de fato compartilhe os insights e descobertas obtidas a partir dela, e é precisamente este o meu objetivo com esta pequena dissertação: reacender uma discussão que muitos prometeram, mas que ninguém parece ter tido disposição para conduzir. Vamos a ela.
Comecemos por uma constatação óbvia: este é um quadrinho visualmente ímpar. Isso porque as construções de cenários trazem um ar impressionista, o que por si só já distancia Celestia da maioria das produções atuais, e que somado ao caráter do texto, acaba transbordando para um tom edílico. Só que o impressionismo, no geral, não se preocupa com a subjetividade humana, representando-os como figuras borradas, vultos e sombras disformes. Isso quando traz alguma representação, já que no geral, se tratam de obras muito mais focadas na incidência da luz nos cenários, sendo os campos abertos e lagos, suas grandes musas. Mas Manuele Fior passa longe disso. Cada representação de Pierrô, Madô ou de qualquer outro personagem transborda vivacidade e personalidade, muito mais do que os cenários, contribuindo para uma fluidez narrativa que parece destoar da densidade que o texto evoca. Esta sobreposição de estéticas parece sutilmente afirmar que o mundo distópico no qual os personagens estão inseridos - provável grande chamariz de leitores - de fato seja digno de um olhar menos apressado, mas não tanto quanto os humanos que nele habitam e as relações que eles estabelecem entre si.
Inclusive, este é o ouro da obra: seus humanos. Especialmente Pierrô, o qual é estabelecido em poucas páginas como um poeta, um pensador livre, um prodígio, mas também uma espécie de pária, alguém incapaz de se relacionar com os demais. Esta última camada, inclusive, é uma das que mais me chamou a atenção no personagem, que além de morar em uma ilha, age como se ele próprio fosse uma.
Talvez por isso que somente na vastidão do continente que ele tenha conseguido finalmente abandonar aquele individualismo crônico. Pois diante da grandeza do pôr do sol - aqui com ares retrofuturistas, se afastando da estética impressionista - e influenciado pelo contato com a criança, a qual mesmo atuando como uma espécie de guia, ainda assim expõe sua inocuidade ao se permitir cair no sono no colo do protagonista, que Pierrô não apenas restabelece contato com a criança que ele um dia foi, mas também com a própria fragilidade.
Fragilidade esta plantada no momento em que a ponte de Celestia fora obliterada. Além de destruir a conexão da cidade do continente, a explosão foi também o momento em que a conexão de Pierrô com os demais humanos foi perdida, pois naquela explosão, sua mãe foi morta, compondo o trauma que lhe levou à exclusão.
É nesse ponto que o leitor passa a ter dimensão de uma saudade e um luto nunca antes expressos verbalmente, mas que Pierrô fazia questão de marcar em sua pele a cada novo dia, ilustrando uma lágrima sobre a própria face. Lágrima que, a partir deste momento, é lavada de seu rosto. Pois há certas feridas para as quais não existe remédio, a não ser, talvez, compartilhá-las com os outros. Tendo finalmente o feito, Pierrô consegue se conectar e se apaixonar por Madô, amor do qual brota um novo ser, como fica subentendido ao final da trama.
Após o alvorecer de Pierrô, há ainda o caminho de volta. O retorno é tão árduo quanto a partida, marcado ainda mais violência, mas ao contrário da violência exposta até ali, esta é uma violência propositada, ao menos narrativamente falando, já que não se trata do fruto do desprezo pelos demais, mas justamente da necessidade de proteger a mulher que ama. Além de que é retornando ao ponto de partida que a evolução do personagem mais se faz clara. Passando por onde já passou, interagindo com quem já interagiu, mas sendo ele próprio, alguém diferente daquele que partira.
E é em Celestia que nos despedimos de Pierrô - com o mesmo poema que o havia introduzido no início da história. Poema não, presságio, como ele mesmo fez questão de pontuar, mas agora levando seu pai consigo. Pois talvez Vivaldi precise encontrar a criança que um dia foi, tanto quanto Pierrô precisou, já que mesmo lidando com a perda de um jeito diferente - preferindo voltar-se totalmente para o futuro, ainda divide o mesmo luto e a mesma saudade que o filho. E é assim que o quadrinho acaba, com Pierrô guiando o pai para a mesma jornada de cicatrização a qual ele próprio se submeteu.
Estas interpretações são subjetivas. Não há como trazer conclusões definitivas sobre um quadrinho que desde a primeira menção na gibisfera brasileira, é vendido com um trabalho colaborativo, em que autor e leitor trabalham juntos para construir seus significados.
Há ainda uma série de associações que (dizem as boas línguas) podem ser feitas com outros trabalhos do autor, mas que ainda não tive a oportunidade de ler, bem como diversas passagens que apesar de ainda reverberarem em minha mente, parecem dissonar do restante da narrativa. Pelo menos até alguma mente suficientemente aguçada (ou suficientemente criativa) desbravar suas essências.
Mas vendo tantos falarem sobre sem de fato tentarem construir algo, deixo aqui minha singela tentativa. :)