Marcelo Rissi 28/05/2023
A gente mira no amor e acerta na solidão
Motivado a iniciar uma nova leitura ? até para não estagnar num ócio que já perdurava há algum tempo ?, titubeei entre as opções que me ocorriam até escolher, de fato, a próxima obra que ocuparia os meus dias. A fila é sempre imensa. A indecisão, também.
Após um hiato de algumas semanas sem me dedicar a qualquer leitura ? efeito de uma ressaca literária, de desconcentração e de um pouco de estafa ?, aferrei-me, ontem ? 28 de maio de 2023 ?, ao início de uma nova obra, aproveitando-me, sobretudo, do enfado do sábado, monótono e acinzentado. Surpreendentemente ? já que meu ritmo de leitura é bastante arrastado, em regra ?, encerrei-a hoje, menos de 24h (vinte e quatro horas) mais tarde. Essa voracidade, involuntária ? não empresto às leituras feição ou natureza de maratona ou de corrida contra o tempo ?, retrata, de antemão, a experiência valiosa proporcionada pelas páginas ? nem sempre agradáveis, é certo ? dessa obra ?eleita?.
Escolhi, para me fazer companhia ao longo do sábado, o título A gente mira no amor e acerta na solidão, da psicanalista, autora e professora Ana Suy.
A gente mira no amor e acerta na solidão carrega, logo ao início, em seu cartão de visitas, um quê melancólico ? basta ler o título ?, sobretudo pelo objeto estudado, a solidão.
De todo modo, a imersão na leitura não confirma, sempre e necessariamente, esse tom descolorido com o qual o título nos atravessa. Repito e advirto: não sempre. Às vezes ? muitas, aliás ?, sim.
A autora, aproveitando o seu trabalho de doutorado, publicou esse livro ? a convite e por encomenda de uma editora ? a fim de projetar e levar, ao público leigo, uma abordagem psicanalista sobre os conceitos do amor e da solidão. Ao longo da obra, a autora detalhou a relação entre ambos ? amor e solidão ?, que, segundo apregoou, não são sentimentos ou fenômenos opostos/avessos, mas, antes, ?rimas?. Rimas, não no sentido literal, de afinidade sonora entre as palavras, mas um conceito inserido na ideia de partes que compõem, harmonicamente, um todo que reciprocamente se ajusta e se equilibra (por mais paradoxo que isso possa soar quando se pensa em amor e solidão).
Segundo a autora ? e, aqui, considerando o caráter técnico do assunto, que, por não dominar, não me arrisco a aprofundar ?, solidão não é expressão sinônima de tristeza. Tampouco conceito ligado, necessariamente, a individualismo ou a isolamento autodestrutivo. É dizer: não se trata de sentimento forçosamente negativo. Ao contrário: sendo condição humana natural ? e, inclusive, necessária, segundo a autora, ao alcance da plenitude de sentimentos férteis e ao cultivo de boas relações ?, a solidão, tomada em sua faceta construtiva e edificante (que há!), pode ser vivida e experimentada sem, necessariamente, angústia ou sofrimento. O livro traz justamente essa perspectiva e sobre essas premissas esse trabalho se desenvolve.
A obra trouxe algumas críticas ? a meu ver, justas e corretas ? à expressão ?solitude?, tão em voga (não bastasse, acrescento, a indesejável rejeição e o desdém dessa palavra ao nosso dialeto, que é suficientemente rico para rechaçar esses estrangeirismos). Os motivos das críticas formuladas pela autora estão minuciosamente desenvolvidos em trecho específico da obra e, essencialmente, miram contra a noção e o tom essencialmente negativos que a expressão ? ?solitude? ? carrega (em contraposição à ideia de que a solidão, diversamente do abandono ou do isolamento, contempla, também, um núcleo positivo a impactar na ação e no comportamento humanos).
A obra, ainda, dissecou, psicanaliticamente ? ou seja, de forma técnica ?, mas de maneira compreensível ao público leigo, os conceitos de ?paixão?, de ?amor? e de ?solidão?, aos quais a autora atribuiu, para os propósitos da obra, as numerações 1, 2 e 3, respectiva e propositalmente (para objetivos devidamente explicados na obra, aos quais não cabe maior aprofundamento aqui, por fugir ao escopo dessa resenha).
Comparando esses conceitos, alegórica e graficamente, com uma gangorra, a autora partiu da adjetivação da paixão como ?loucura?. Do amor, como ?loucura sã?. E da solidão, como ?realidade?. E, construídas essas premissas, detalhou cada uma dessas enunciações, discorrendo, longamente, sobre a relação e os efeitos da combinação entre elas.
Ao final, propôs-se a demonstrar ? inclusive com alusões a lições de Freud e de Lacan ? que, ao contrário da percepção leiga e da crença habitual e popular, nem sempre paixão e amor estão ligados com proximidade, intimidade ou afinidade (por vezes, aliás, eles são avessos e até perigosos, reciprocamente. Afinal, na paixão, sentimento que leva a extremos, perde-se, por vezes, a racionalidade e o senso da realidade, como explicado tecnicamente na obra).
Lembro, nesse ponto, que a ideia popular de paixão não é, necessariamente, aquilo que, leigamente, assim a compreendemos. A obra acautelou-se, elogiosamente, nas devidas conceituações técnicas, de modo a evitar confusões de ordem terminológica (entre aquilo que se afirmou no livro em contraposição com que se entende popularmente sobre alguns assuntos, evitando-se, assim, mal-entendidos).
Por outro lado, e também desafiando crença popular, a autora propôs-se a demonstrar, de forma igualmente técnica, que ?amor? e ?solidão? não se repelem. Não são paradoxos. Ao contrário, aproximam-se, coabitam o mesmo sentimento e, alimentando-se mutuamente, mantêm-se vivos. A ausência de um, inclusive, colapsa o outro.
Não tenho, aqui, aparato ou repertório teórico para aprofundar os temas dos três parágrafos anteriores, tampouco expertise para explicar, mesmo com as minhas palavras, as relações entre esses conceitos e a conclusões alcançadas pela autora. Nesse ponto, quero apenas deixar registrado que a autora, ao desenvolver, analiticamente, a sua extensa argumentação, não se apoiou em abstrações, em generalidades ou em frases de efeito. Ao contrário, Ana Suy emprestou sentido prático aos temas que desenvolveu, entregando ao leitor uma obra que, embora trate, pela sua própria natureza, de assuntos íntimos e subjetivos ? amor, paixão, solidão e, no geral, o comportamento humano ?, não se situa em campo meramente hipotético ou de confabulação exclusivamente teórica. Ao contrário, Ana Suy deu sentido real, efetivo e concreto a temas impalpáveis no plano material (amor e solidão), inclusive com ilustrações colhidas a partir da sua prática clínica e de situações cotidianas (muitas das quais os leitores seguramente já vivenciaram).
A obra trouxe, ainda, reflexões sobre a completude individual. Nesse ponto, a autora enfatizou que a ideia de amor não pode estar atrelada à noção de completude/integralização do/no outro. Repudiou a noção de que amor pressupõe uma falta individual, um espaço vazio que se pretende suprir pela presença e companhia de um par, de outro.
Ao contrário: em seu livro, a autora enfatizou, com veemência, que somos completos em nossa individualidade e essência, mas que, em todos nós, há, invariavelmente, uma solidão impreenchível, que, todavia, não nos torna imperfeitos ou inacabados (mas que, opostamente, serve de campo para proliferação de conexões e sentimentos profícuos).
Como disse a autora (em alusão que faço com as minhas palavras): amar não é somar-se a outro em nossas incompletudes, para que ambos se preencham. Amor ? entendido em qualquer de suas formas ou manifestações (entre casais, familiares etc.) ? é o encontro de duas solidões. Ou melhor: é o encontro de, AO MENOS, duas solidões. Novamente, a abordagem não é meramente abstrata. O sentido prático de tudo isso é magistralmente explorado e explicado no livro.
A obra trouxe, por fim, uma tocante digressão sobre o início e, especialmente, sobre o fim das coisas. Ao resgatar a ideia de que viver eternamente é condenar-se, a autora destacou a importância da consciência da finitude, de modo a emprestarmos valor real àquilo que é, de fato, importante. Sustentou, nesse aspecto, que a relevância dos momentos e dos afetos está ligada, justamente, à noção ? nem sempre presente, conscientemente ? de que nada é eterno. De que tudo, absolutamente tudo, é temporário e, por vezes, frágil e fugaz (a pandemia nos ensinou algo sobre isso?), apesar da angústia e do trauma que a ruptura, qualquer que seja ela, possa provocar (e, no mais das vezes, provoca). Soa clichê, mas há um sentido bastante prático e real nessa digressão, se cautelosamente analisada.
Ainda no contexto desse tema ? finitude e correlato valor às coisas ?, a obra destacou a dificuldade não só de aceitação do término de um ciclo (ainda que, racional e intimamente, já tenhamos compreendido, há muito, que o fim se perfez). Lembrou-nos, especialmente, do desafio de compreendermos e identificarmos o ponto em que algo, de fato, está formalmente desfeito e, assim, merece, oficialmente, um desfecho. Nesse aspecto, a obra não se ateve apenas às rupturas de enlaces. Ampliando o conceito analisado, a autora levou essa abordagem para outros núcleos, inclusive existenciais, trazendo à reflexão, por exemplo, de questões sobre o momento em que é necessário aceitar, até mesmo, o fim da vida (em situações em que a sobrevida, assim mantida, se torna mais martirizante que o seu desligamento).
Pensemos, a propósito, numa hipotética, mas não rara, situação de paciente que ostente quadro clínico irrecuperável e irreversível. Nesse ponto, é relevante o debate sobre os cuidados paliativos, tema tangenciado, mas não aprofundado na obra (até para não escapar aos propósitos do seu objeto central de análise).
Em conversas e a partir da leitura de algumas resenhas, observei que algumas pessoas pontuaram o aspecto excessivamente teórico na formulação de alguns temas. A crítica tem a sua pertinência ? e, inclusive, a sua parcela de verdade ?, mas, em minha ótica, não houve interferência negativa na fluidez da leitura. Isso porque, mesmo nesses trechos, a autora, após invocar conceitos rigorosamente técnicos, imediatamente acautelou-se de destrinchá-los, reescrevendo-os de maneira compreensível ao público leigo ? um dos alvos da obra ?, inclusive ilustrando situações com exemplos práticos e plausíveis.
Dito tudo isso ? que, evidentemente, não esgota os temas tratados na obra, numerosamente mais amplos e extensamente mais profundos ?, arremato (já tardiamente, por certo): não sei definir muito bem como eu estou me sentindo ao fim desse percurso, mas essa foi uma das viagens literárias mais imersivas, contemplativas, meditativas e de autoconhecimento na qual me envolvi até hoje (talvez pelo meu baixo repertório, por ora, de leituras de obras de psicanálise).
Pedindo licença para uma alegoria, é como se eu tivesse sido ?atropelado?, mas, apesar disso, inundado por uma sensação boa (boa, talvez, não seja exatamente a palavra, mas é a mais próxima que me ocorre na minha dificuldade linguística de definir um sentimento tão dicotômico e complexo). É dizer: é como se o caminho em direção ao autoconhecimento (a apenas um pouco dele, na verdade) tivesse conduzido pelos meandros de um labirinto frio, sombrio, espinhoso e doloroso, mas que, ao final, ele ? o caminho-labirinto ? entregasse, como recompensa, uma sensação de anestésico alívio (talvez essa expressão seja mais apropriada).
Em suma: a lição que levo comigo, ao final dessa obra, é a de que, se a gente consegue visualizar, de forma mais clara e desprendida, todo o processo íntimo que nos amordaça e nos conduz a algumas angústias, aflições e sofrimentos, capacitamo-nos a uma higienização da mente e a uma purificação do coração contra determinadas chagas persistentes. É, em suma, um processo fundamental para que possamos ajustar as nossas próprias engrenagens. E isso serve para QUALQUER aspecto de nossa vida! O livro, ao escolher dois temas específicos, funciona como valioso incentivo e ponto de partida para outros estudos, análises, pesquisas e leituras. Que a gente se motive e se impulsione a isso.
Arrematando, completo o título do livro (exclusivamente sob a minha perspectiva): a gente mira no amor, acerta na solidão? e o tiro, ricocheteando, nos atinge de volta. Esse disparo, que necessariamente nos alveja, machuca, mas não mata. Aliás, essa saraivada é, por vezes, [muito] necessária. Torna-nos mais fortes. Afinal, autoconhecimento induz ao autodomínio.
Aos que chegaram até aqui nessa extensíssima resenha, meu mais profundo agradecimento.