.Igor 11/03/2024
Encontrei essa quase resenha guardada por aqui, acho que esqueci de postar no Skoob na última vez que li essa obra... Enfim, está na hora de consertar esse pequeno lapso, agora só um detalhe: citarei alguns trechos do livro, mas nada que seja considerável spoiler (pelo menos espero que não). Fica o aviso, vamos ao texto.
"Anos mais tarde, diriam que aquele homem veio do norte, do Portão dos Cordoeiros. Chegou à pé, conduzindo seu cavalo pelas rédeas. Já era tarde; as barracas dos cordoeiros e seleiros estavam fechadas e a ruazinha, deserta. Fazia calor, mas o homem carregava uma pesada capa preta sobre os ombros. Chamava a atenção.
Parou diante da estalagem O Velho Narakort e ficou um momento ouvindo o burburinho. Àquela hora, como de costume, o lugar estava cheio. O desconhecido não entrou. Seguiu adiante e puxou seu cavalo até uma taberna menor, chamada A Raposa. Estava quase vazia; afinal, não tinha boa fama. O taberneiro ergueu a cabeça por cima de uma barrica de pepinos marinados e mediu o visitante de alto a baixo. Este, ainda com a capa nos ombros, permaneceu diante do balcão, imóvel e calado.
- O que vai ser?
- Cerveja - pediu o desconhecido, com voz desagradável.
O taberneiro limpou as mãos no puído avental e encheu uma velha caneca de barro. O desconhecido não era velho, mas tinha os cabelos quase totalmente brancos. Sob a capa, vestia um surrado gibão de couro, amarrado nos ombros e nas axilas. Quando tirou a capa, todos puderam ver a longa espada de dois gumes presa às costas por um cinturão. Nada havia de extraordinário naquilo, já que em Wyzim quase todos andavam armados, mas ninguém carregava uma espada às costas como se fosse um arco ou uma aljava. "
O nome desse desconhecido é Geralt de Rívia e ele é um bruxo. Agora, alguém podem estar se perguntando, o que é um bruxo? Um bruxo (witcher) é um caçador profissional de monstros, e Geralt chegou à cidade de Wyzim para um trabalho especial. Adda, a filha do rei Foltest de Temeria, um dos quatro grandes reinos do Continente, foi amaldiçoada na sua concepção, e veio ao mundo natimorta. Mas a maldição não se limitou a isso: sete anos depois do seu falecimento, ruídos horríveis começaram a ser ouvidos próximo à tumba real, e, pouco tempo depois, ocorreram as primeiras mortes no castelo do rei. A princesa Adda se transformara em uma estrige (ou estriga), um ser animalesco e monstruoso que pouco lembra um humano, dotado do mais profundo ódio de todos os seres vivos e inevitavelmente ataca e devora todos os que encontra.
Esse seria um trabalho perigoso por si só, mas eliminar monstros faz parte da rotina de Geralt. No entanto, o rei Foltest tinha uma condição bem clara: o bruxo não poderia encostar num fio de cabelo da princesa Adda; a oferta de Foltest era para que sua filha fosse desencantada, e para isso, o bruxo teria que sobreviver uma noite inteira com a estrige, dormir ao seu lado e acordar quando o galo cantar três vezes. Bem simples, não?
E assim começa "O Último Desejo", o primeiro livro da Saga do Bruxo Geralt de Rívia. Agora, para o bem do desenvolvimento desse texto, direi apenas que Geralt consegue cumprir a tarefa, mas não sai ileso. Para se recuperar dos ferimentos sofridos na sua noite com Adda, ele vai para o templo da deusa Melitelle, onde fica aos cuidados de sua amiga de longa data, a sacerdotisa Nenneke. Enquanto se convalesce nesse pitoresco templo, Geralt se vê às voltas com acontecimentos de seu passado, alguns bem recentes, outro já distantes, e em pouco tempo fica claro que o que aflige o bruxo é algo muito mais perigoso do que qualquer monstro que já enfrentou na sua carreira.
Andrzej Sapkowski criou uma estrutura narrativa incrível. Enquanto recupera-se no templo de Melitelle, a narrativa encontra-se no presente, um espaço contido, momentos apropriadamente chamados de "A Voz da Razão"; esses momentos são alternados com o passado de Geralt, e vamos conhecendo-o pouco a pouco. Não há uma história de origem nem nada parecido, especialmente nesse que é o primeiro livro; pelo contrário, Geralt de Rívia é uma pessoa famosa, conhecido por toda a Temeria e em alguns dos reinos vizinhos por uma série de alcunhas, como o Lobo Branco e O Açougueiro de Blaviken. Suas lembranças são de antigos trabalhos, que podem ser lidos como contos isolados, mas que entrelaçam-se com o presente, e dão indícios nebulosos do futuro que espera nosso "herói". Falar mais sobre esses capítulos do passado não seria justo com alguém que possa vir a ler o livro, então pularei para outro tópico.
Coloquei herói entre aspas por algumas razões. Geralt é um bruxo e isso significa muito mais do que ser treinado para matar monstros. Entregue à sua Ordem ainda criança, ele passou por uma série de experimentos visando forçar mutações em seu corpo: hormônios, infusões com as mais diversas ervas, infecções com vírus e rituais com magias ancestrais. E de novo. E mais uma vez. Até atingir o resultado ideal. Como sobreviveu à essa fase e recuperou-se relativamente rápido, foi considerado excepcionalmente resistente e apto para experimentos mais complicados, e isso, nas palavras do bruxo, foi pior que tudo o que viera antes, muito pior. Geralt foi o único que sobreviveu à esse procedimento, e como resultado mais visível, seu cabelo perdeu o pigmento, ficando totalmente branco. Depois que sobreviveu a isso, lhe foi ensinado as mais diversas habilidades, tudo para que ele se tornasse apto a erradicar os monstros do mundo como um verdadeiro bruxo.
Já falei tanto em monstros, que deu pra perceber que o mundo de Geralt está longe de ser um paraíso idílico, não é? O Continente é gigantesco e antigo, habitado pelas mais diversas criaturas e raças. Homens, elfos, anões, halflings (parecidos com hobbits, mas fazem parte da mitologia eslava, algo como duendes)... Diversas raças racionais dividem espaço com animais fantásticos (e perigosos), como dragões, mantícoras, wyverns, basiliscos, quiquimoras, lobisomens, vampiros; a mitologia eslava é largamente desconhecida no ocidente, mas é de uma riqueza ímpar e Sapkowski explorou ela muito bem.
Apesar de exótico, não pensem que esse mundo é seu típico reino medieval fantasioso. Os Quatro Reinos estão à beira da guerra, motivada por questões políticas e sucessórias complexas e na maior parte das vezes, como lembra Geralt, ridículas; Feiticeiros e Bruxas conjuram feitiços cada vez mais poderosos, com efeitos colaterais devastadores, destruindo regiões inteiras; chegou-se ao ponto de vários reinos criarem impostos sob a prática da magia, e outros ainda ativamente caçam e matam qualquer praticante de magia; elfos, anões e halflings vivem uma submissão forçada aos homens, muito mais numerosos que as raças antigas, sendo forçados a viverem em guetos onde passam fome e sobrevivem em condições horríveis. As tensões raciais transformaram Temeria, o maior dos Quatro Reinos, num caldeirão prestes a estourar em uma guerra civil.
Em meio a tudo isso, Geralt de Rívia tenta seguir sua profissão sem tomar partidos; ele não é mais totalmente humano, de modo que é visto com desconfiança e raiva pelos humanos e pelas outras raças. Intrigas políticas tentam envolvê-lo frequentemente, aproveitando-se de sua habilidade tanto como matador de monstros quanto de assassino de homens, mesmo que um bruxo nunca aceite dinheiro para tirar a vida de outro ser racional, fazendo isso apenas para se defender. A vida não é fácil para nosso protagonista, mas ele consegue seguir em frente com um senso de humor ácido e irônico, além de um charme lendário com as mulheres, que lhe rendeu grandes amizades e inimigos terríveis.
?- Stregobor, o mundo é assim mesmo. Quando se viaja tanto quanto eu, vê-se muita coisa. Dois camponeses se matam por causa dos limites de um terreno cultivado que, já no dia seguinte, será pisoteado por cavalos de dois exércitos em guerra. Homens enforcados pendem das árvores na beira das estradas, enquanto bandidos degolam mercadores nas florestas. Nas cidades, a cada passo tropeça-se num corpo caído na sarjeta. Nos palácios, as pessoas se agridem com punhais e, nos banquetes, sempre alguém cai roxo debaixo da mesa, por envenenamento. Já me acostumei com isso; portanto, por que ficaria impressionado com uma ameaça de morte, principalmente se ela é dirigida a você??
Um desses amigos, que conhecemos um pouco no livro, é o bardo Jaskier. Provavelmente o melhor amigo de Geralt, as estradas de ambos se cruzam com frequência. É interessante que, como muitos personagens da obra, Jaskier é divertidíssimo: inteligente e sagaz em suas cortadas, esse poeta mulherengo acaba se envolvendo em belos problemas, mas é um bom amigo, sempre ao lado do bruxo nas horas do aperto, mesmo que não seja (muito) útil.
Um bruxo (ou witcher, particularmente prefiro o nome original) existe para caçar monstros. Mas no mundo que Andrzej Sapkowski criou, nem todos os que se parecem monstros são maus e nem todos os que se parecem anjos são bons. Não há uma dualidade "bem" e "mal" definida, e muitas coisas não são o que aparentam. Transcreverei um trecho de uma conversa entre Geralt e Jaskier, enquanto eles estavam em uma viagem aos Confins do Mundo, onde a civilização acaba e a natureza é quase tão selvagem quanto séculos atrás, existindo apenas alguns povoados e pequenos feudos.
" - Geralt - falou repentinamente, - você tem que admitir que ainda existem monstros. Talvez não sejam tão numerosos quanto no passado; talvez não fiquem escondidos atrás de cada árvore da floresta... mas existem. Por que, então, as pessoas inventam outros? E, ainda por cima, acreditam neles? Você tem uma explicação para isso, afamado bruxo Geralt de Rivia? Ou será que nunca se interessou por essa peculiaridade?
- Não só me interessei, célebre poeta, como tenho uma explicação para ela.
- Estou curioso.
- Aos homens agrada inventar monstros e monstruosidades. Com isso, sentem-se menos monstruosos. Quando se embriagam, são capazes de trapacear, roubar, bater na esposa, deixar morrer de fome a velha vovozinha, matar a machadadas uma raposa pega numa armadilha ou ferir com flechas o último unicórnio do mundo. Nessas horas, gostam de pensar que Moahir, que adentra suas choupanas de madrugada, é muito mais monstruosa do que eles. Aí ficam com o coração mais leve e acham mais fácil tocar a vida adiante.
- Guardarei na memória o que você falou - falou Jaskier após um momento de silêncio. - Vou encontrar rimas adequadas e compor uma balada inspirada nessa teoria.
- Pois faça isso, mas não espere por grandes aplausos."
É um mundo complexo, habitado por seres com personalidades e hábitos tão ou mais complexos quanto seu habitat. Talvez essa seja uma das características mais fascinantes da obra desse escritor polonês.
Iria finalizar o texto por aqui, mas caso estejam interessados em uma leitura ágil e inteligente, em conhecer um mundo complexo e fascinante, povoado por alguns dos personagens mais bem construídos de ambos os lados de Greenwich, definitivamente recomendo "O Último Desejo".