Livros da Julie 20/06/2022Quando a alegria de viver está em tudo o que se faz-----
"pequenas abdicações cotidianas que surgem com o envelhecimento"
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"ver a vida como uma corrida de obstáculos sucessivos"
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"alegrar-se por se saber mortal, afinal é isso que justifica saborear a vida."
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"ir ao encontro da desgraça com os olhos e a mente bem abertos, talvez disposta a suplantá-la"
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"a palavra 'época' remete de maneira indistinta ao passado, ao tempo dos pais e de todos aqueles que os precederam, sem profundidade genealógica nem cronológica. 'Naquela época quer dizer gentilmente 'na sua época' (...) a contraparte, a recíproca do famoso 'no meu tempo' usado pelos adultos (...) vagamente depreciativos, em ambos os casos (...) reivindicações identitárias construtivas do conflito de gerações"
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"dizia-se que os velhos voltam à infância. Tratava-se (...) de estigmatizar o declínio da razão e de todas as funções cognitivas. (...) Contudo, têm eles de fato, escolhas?"
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"A reprovação social seria atroz com quem preferisse aproveitar o tempo livre em vez de 'sacrificá-lo' tomando conta dos netos."
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"Talvez (...) tomar conta dos netos (...) pertença, no pensamento coletivo, ao mundo das mulheres. O que torna mais simples e desprovido de valor esse 'tomar conta'..."
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"Não poder mais decidir sozinha o que fazer com o próprio tempo é algo dolorosíssimo. (...) É necessário um aprendizado da espera (...) sem nenhum outro fim senão a boa vontade alheia. Por que dispomos muito mais facilmente do tempo de alguém que está deitado do que de alguém que está de pé?"
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"quando alguém reaparece na vida de outrem depois de uma longa ausência (...) parece não apenas lançar uma ponte entre o passado e o presente, mas acima de tudo aniquilar por completo o tempo que separa o passado e o presente."
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"O riso instaura uma forte ligação entre os seres humanos por concretizar um continuum entre os corpos que, nos sobressaltos, se regeneram e aguçam o espírito."
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"momentos de impotência diante da injustiça, mesmo insignificantes, jamais se apagam."
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Ao sabor do tempo foi a leitura coletiva de junho da Editora Valentina promovida pelo @clubeliterarioferavellar.
O livro é dividido em duas partes: Colcha de Retalhos e Modelagem. Com um ritmo lento, mas uma escrita poética, Françoise transpõe para o papel os coloridos e vívidos instantes que moldaram sua vida.
No prólogo, ao explicar que a primeira parte é uma enumeração de "pequeninos fatos, percepções, sensações e emoções que se constituem a base e a matéria identificável da nossa existência", a autora está sendo literal. O texto, em parágrafo único, é uma grande lista ininterrupta de ações e sentimentos cotidianos, sejam corriqueiros ou singulares, que percorrem uma ampla gama entre incríveis, adoráveis, agradáveis, inusitados, bizarros e detestáveis. Segundo a autora, o estilo é o mesmo de seu livro anterior, "O sal da vida", e acho que seria proveitoso tê-lo lido primeiro.
Além das pequenas alegrias e prazeres diários, Françoise cita inúmeras experiências ao ar livre, marcadas por uma diversidade de plantas e animais, recordações singelas e intensas de infância e férias passadas no campo. Ela ainda traz várias referências artísticas, principalmente cinematográficas e literárias ("penetrar a atmosfera silenciosa das bibliotecas", "adorar os livros de Jane Austen, das irmãs Brontë, de Thomas Hardy"), todas elas reunidas, para nossa grande satisfação, ao final do livro. Ao final, aliás, também somos presenteados com páginas pautadas para que possamos refletir e discorrer sobre o que representa, para nós, "o sal da vida".
É possível sentir nitidamente a força das emoções que a autora queria transmitir. No entanto, a lista tem origem em sua vivência, não na nossa. As ações e os sentimentos elencados são, por vezes, tão específicos, que limitam bastante o universo etário, geográfico e cultural de abrangência dessas memórias afetivas, fazendo com que a identificação do leitor não seja plena. É impressionante constatar como gostos e hábitos podem diferir entre gerações e povos, apesar dos costumes e preferências "universais". Contudo, além de uma leve inveja em relação a momentos que não vivemos nem nunca viveremos, resta a curiosidade de conhecer mais a fundo e formar um retrato mais preciso daqueles que possuem tais lembranças.
A segunda parte é instrutiva, reflexiva e comovente. Com considerações sobre a idade, a passagem do tempo e a capacidade de ainda se lembrar perfeitamente de certos acontecimentos (mas ter se esquecido de outros tantos), o texto se aprofunda nas dificuldades enfrentadas por todos aqueles que, mais cedo ou mais tarde, deixam de ter controle sobre a própria vida. É possível entender que a autora escreve este livro já bem idosa e acamada. De fato, ela faleceu meses depois da publicação.
Após questionamentos e divagações filosóficas, essa parte se assemelha a uma autobiografia, destacando os eventos ocorridos após a chegada de Françoise ainda menina a Paris, com recordações sobre a infância, a adolescência, a feminilidade, as amizades, a guerra, as doenças, as mortes, a vida acadêmica e profissional, o casamento, o trabalho em Burkina Faso como etnóloga e a convivência com o famoso antropólogo Claude Lévi-Strauss. Aliás, dele ela traz um relato repleto de nostalgia e admiração, quiçá até ternura por essa icônica personalidade que lhe deu novo rumo à carreira.
Trata-se, portanto, de uma coleção de instigantes fragmentos de vida de uma importante intelectual feminista, que abriu portas em um meio dominado por homens, que enfrentou, como tantas outras, as difíceis realidades de uma mulher de sua época. Apesar da ocasional síndrome de impostora que a acompanhava e das grandes provações de saúde pelas quais passou, Françoise soube apreciar a beleza do mundo e das pessoas que a rodeavam e deles obter a alegria e a sabedoria necessárias para sua existência.
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