Carla.Parreira 04/05/2024
Ao sabor do tempo (Françoise Héritier). O livro apresenta duas partes distintas. Na primeira parte, intitulada "Colcha de Retalhos", a autora enumera uma série de elementos que, segundo sua própria avaliação, conferiram sabor à sua vida. São passagens que mesclam memórias com sensações. Ao longo de várias páginas, são retratados momentos delicados e amáveis, enfatizando uma vida vivida plenamente. Já na segunda parte, intitulada "Modelagem", somos apresentados a uma experiência que foge um tanto da realidade de sua época, quando a protagonista reside na África, em um ambiente claramente dominado por homens. Na qualidade de pesquisadora etnológica, empenhada em combater a epidemia de AIDS e trabalhando para o governo francês, a narrativa entrelaça diferentes momentos de sua vida (novamente, não de forma biográfica, e isso fica claro) com experiências de vida que levam o leitor a refletir sobre sua própria visão de mundo e tudo o que já testemunhou. O primeiro trecho que me chamou a atenção foi: "...Descobrir, encantada, os recursos mnemônicos de antigamente: Minha vó traga meu jantar: sopa, uva e nozes, para memorizar, na infância, a lista dos planetas..." Para mim essa frase está incompleta porque falta uma palavra com P no final para representar Plutão. Pelo menos na época em que eu estudava, ele era considerado um planeta, e a frase que eu usava para memorizar a sequência era: minha vó tem muitas jóias, sobra uma, não pego. Gostoso recordar isso. Outros trechos: "...É esta capacidade de alternar com facilidade austeridade e prosperidade, doença e saúde, a sede de viver e o medo de morrer, que me dá força e resistência... O que é saber, o que é envelhecer? Duas palavras que costumam estar associadas. Os velhos são sábios, a biblioteca morre. Por que uma afirmação tão corriqueira quanto esta deixa arrepiados os cabelos daqueles a quem é destinada? Você, que sabe tantas coisas, que tanto aprendeu ao longo da vida; você, que é um poço de sabedoria como dizem, verdade aceita por você mesma, e que consagrou a vida à ciência, merece o devido respeito. O desafortunado poço de sabedoria torna-se, sob a injunção imposta, o que nunca cessou de ser: um poço sem fundo de espanto, de angústia, de medo paralisante diante da imensidão da sua ignorância e dos campos de conhecimento onde jamais se aventurou. Este saber não dominado inteiramente pela alma se sente açoitado, triturado pela ponta fina da dúvida, a única coisa que submerge desta totalidade que lhe creditam, ponta tão afiada, tão penetrante que é impossível defini-la. As palavras faltam, o contorno das coisas fica embaçado, tudo o que era claro escurece. O que sei? Nada, tão pouco, pouquíssimo, a espuma, a poeira... Foi nessa mesma época que comecei a sofrer de uma doença autoimune rara, identificada em seguida: policondrite atrófica recidivante. Ela foi precedida por três pericardites, que me deixaram hospitalizada dois meses em cada uma das vezes e interromperam a minha docência a partir do primeiro ano. Alguns colegas etnólogos zombaram dizendo que a doença tinha sido causada pelo estresse e que eu não tinha 'rins suficientes' para ocupar o cargo de professora... Encontrei minha primeira serpente, comprida, grossa como um punho de homem, uma inofensiva píton sem dúvida, serpenteando em silêncio pela rua. Olhei-a sem comoção, o que me surpreendeu. Ela me ignorou; segui o meu caminho... A outra experiência foi consequência de uma desventura. Certa feita, eu fui atacada na savana, perto de Louta, por um enxame de abelhas africanas selvagens... Cruzei com kobas ou antílopes africanos, grandes e de bonitos chifres anelados, com um casal de leões atravessando a pista numa noite clara (em torno de sete anos de presença intermitente!), com mabecos, hienas. Em resumo, nada de extraordinário... A alimentação básica era constituída de mingau de milho acompanhado de molho de vegetais variados. Eu não gostava muito do molho de quiabo, gosmento demais para o meu paladar, mas apreciava bastante o de folhas frescas de baobá..."