carlosmanoelt 02/05/2024
?Vamos todos cirandar??
?A vida é uma ciranda de pedra, onde dançamos sem perceber o chão fugir sob nossos pés."
Virgínia, a protagonista de Ciranda de Pedra, ilustra uma cena que chama de ?descrição de uma família?. Em certa medida, é justamente sobre isso o romance. Mas não só.
No início do livro ela é uma criança, a caçula entre três irmãs cujos pais estão divorciados. Virgínia mora com a mãe enquanto as outras duas moram com o pai em um casarão tipicamente paulista e burguês. A personagem principal, ainda infante, não compreende completamente os problemas familiares e é constantemente ignorada pelas irmãs. Nós então acompanharemos o desenvolvimento pessoal da protagonista, através de seus olhos descobrindo a loucura da mãe, os segredos do padastro e as razões pelas quais é evitada pelo próprio pai.
O livro, assim como os contos de Lygia, é repleto de elementos simbólicos, animais, cores e paisagens muito bem selecionadas para dialogar perfeitamente com as situações e personagens. Por meio deles é abordado um dos temas principais do romance: a relatividade da realidade, esta sendo espécie de elemento cinematográfico que adquire diferentes dimensões e significados a depender do ângulo e distanciamento da câmera, real distinto da aparência de real.
A ideia de ciranda pode ser interpretada de diversas maneiras. Em primeiro lugar, trata-se claramente de uma alusão à ciranda de anões que enfeita o jardim da mansão, imóvel e impenetrável. Em um segundo momento, a ciranda corresponde àquela composta pelas irmãs da protagonista e seus amigos, ciranda esta que, embora animada, permanece inacessível. Estabelecendo um paralelo entre as duas, pode-se dizer que Lygia põe em cheque a paralisia das relações interpessoais, a estratificação e mesmo o empedramento desumano que atinge o coletivo e condiciona as ações individuais.
Embora a linguagem do romance seja fluida, informal e fácil de acompanhar, ela não impede a criação de belas metáforas no livro. Silviano Santiago chegou a denominá-la de ?linguagem alucinatória?, já que, sendo discurso indireto livre, é extremamente interior, representativa da confusão mental da protagonista e que se desenvolve junto com ela, amadurecendo também, sem perder a honestidade. Essa linguagem é tão pessoal, tão representativa de Virgínia e suas alucinações que, em carta escrita à Lygia sobre o romance, Drummond caracteriza a personagem principal como autora. É como se ela tivesse escrito Ciranda de Pedra, pois a linguagem é toda dela e isso cria um livro perturbador e envolvente, muito por conta da solidão e da introspecção características da protagonista. O foco na interioridade de Virgínia reforça a distinção desta em relação aos demais: ela, profunda, criativa e imaginativa; eles, superficiais, habitando o terreno das aparências. Quando começa a lidar maduramente com sua condição de indivíduo independente, Virgínia faz cair os véus que transformavam em divindades pessoas e relações frívolas. É por seus ?olhos delatores? que a verdadeira essência das personagens nos é revelada. Esse é o amadurecimento necessário. O final da obra é também muito simbólico para o sentido de aceitar e acolher a si mesmo apesar dos outros.
Tudo isso, somado à capacidade lygiana de encaixar em pequenos trechos tudo ? ou quase tudo ? o que há de mais significativo na história, faz com que Ciranda de Pedra seja um dos melhores romances de formação da literatura brasileira, inspirando adaptações televisivas e indicado aos mais variados públicos.