Pedro
10/03/2023Com seu gravador, bloco de notas e várias perguntas a serem respondidas, a jornalista de origem argentina Gabriela Suertegaray segue em busca de preencher uma pauta sobre o escândalo na década de 90 envolvendo barriga de aluguel e contrabando de bebês.
É com essa motivação jornalística que a jovem então se encontra com a personagem principal da pauta: Damiana, uma mulher madura, de criação simples, humilde e que desde cedo foi trabalhar para uma família de classe alta como empregada doméstica a fim de contribuir na renda de casa. Mensalmente, com a ajuda de sua prima Rose, praticamente todo o dinheiro ganho era enviado para o interior.
Como as condições financeiras não eram muito boas na época, Damiana recebe uma proposta invasiva: gerar um filho para os patrões em troca de uma quantia considerada de dinheiro. Com a expectativa de mudança de vida, é então que ela aceita, mas sem entender bem todos os trâmites desse processo que é gerar uma vida e logo em seguida ter que ceder a outros.
Acompanhamos então, por meio das informações coletadas por Gabriela, os sentimentos e o relato das gestações que Damiana passou e um sistema mafioso de contrabando internacional de bebês financiado por gente extremamente rica, além de um afeto no meio do seu percurso de ser um transporte para outros.
'Como se fosse um monstro', segundo romance de Fabiane Guimarães que a editora Alfagura lança, é um livro sobre as oportunidades que a vida oferece e também nos mostra que as circunstâncias de uma vivência, seu contexto social e cultural moldam as escolhas que, na maioria das vezes, são tomadas pelo impulso da necessidade, seja financeira ou de afirmação pessoal.
Damiana, apesar de no presente narrado ser uma personagem adulta, a princípio ela foi de muita ingenuidade, encantada com o novo, com as perspectivas que o dinheiro traz e a possibilidade de viver com qualidade de vida, nos fazendo refletir sobre o peso da maternidade; para algumas mulheres trata-se de uma graça divina, embora para outras um fardo a ser carregado sem apego emocional e o que chamam de instinto materno. No caso de Damiana um imbróglio que ao passar, apesar dos estragos de ter um corpo como incubadora, trata as bênçãos que o dinheiro compra.
Além disso, o poder que muito dinheiro traz para alguns. Homens com suas necessidades de validação masculina, a frequente sensação de acharem que podem tudo apenas sacudindo um talão de cheque branco para aqueles necessitados como um adestrador oferecendo petiscos ao seu cãozinho.
A obra é enxuta, sem grandes rodeios ou proximidades com ritmo e fluidez agradável. A autora entrega aos poucos detalhes que vão moldando no leitor que pode ter uma visão do desfecho final antes do tempo, porém, traz uma informação que complementa a reflexão sobre maternidade.
Uma obra para se atentar à nova literatura contemporânea brasileira e para acompanhar a evolução da Fabiane Guimarães desde 'Apague a luz se for chorar', podendo interessar aos leitores de 'Os sete maridos de Evelyn Hugo' (Taylor Jenkins Reid, Ed. Paralela, 2019), por trazerem a relação envolvendo jornalista e fonte, mesmo que tenham contextos extremamente distintos, aqui bem mais do anonimato e a pobreza.