spoiler visualizarSaulo.Fragoso 03/04/2023
Que final.
O título do livro já deixa o leitor com o sinal de atenção ligado, e a apresentação do policial criminal nazista Bruno Brückner, passageiro do Graf Zeppelin LZ 127, coroa essa sensação de ódio. Depois de terminado o livro, a gente ri um pouco, lembrando do desfecho e de como o autor foi reforçando a ira do leitor a partir da presença de indivíduos como o infame médico sanitarista Karl Kass Vögler; o comerciante de café Otto Klein; o crítico de arte William May, e a baronesa Fridegunde von Hatten. Como o desenvolvimento do livro é focado na ampliação de características e psicologia dos personagens ? em oposição ao início e ao desfecho do volume, que exploram mais os cenários e trazem discussões de ideias e leituras históricas ?, o público passa a conhecer mais intimamente cada uma dessas pessoas, e a fazer a sua própria lista de suspeitos, assim que o corpo de um dos passageiros é encontrado no banheiro.
Todavia, a investigação do crime e a busca detalhada por pistas não é o foco de Samir Machado neste livro. Ele ronda um pouco algumas publicações de mistério ou espionagem populares nos anos 30 (chega a citar Erskine Childers e Os 39 Degraus, por exemplo), e até toma a liberdade de deslocar Assassinato no Expresso do Oriente para publicação em 1933, em vez de 1934 (aliás, achei ótima a forma ?codificada? de aparição desse livro, com a tradução alemã de Elisabeth van Bebber, para a Goldmann Verlag Leipzig: Die Frau im Kimono), brincando com o gênero e estendendo o manto de mistério politizado que, de fato, é o cerne da obra. Além disso, o fato de estamos num meio de transporte e termos um grupo heterogêneo de personagens flerta com a obra de Agatha Christie, de modo que a referência feita pelo autor não é, em nada, vazia. No meio dessa atmosfera de frequente desconfiança, vemos aparecer justificativas para a forma de pensar e agir dos personagens, bem como os motivos que supostamente os tenham impulsionado a cometer o crime.
Do momento em que o zeppelin sai de Pernambuco até o final das as investigações, a narrativa de Machado vai pouco a pouco incorporando reflexões que mostram como a História do Brasil esteve ligada à extrema-direita nazista, e isso aparece factualmente no enredo pela presença do Aurora Alemã (Deutscher Morgen), semanário do Partido Nazista publicado em São Paulo, pela embaixada ? e para quem não sabe, o tal jornal foi editado de 1932 a 1941, e tinha sua redação no bairro da Mooca ?; e pela presença do Congresso Brasileiro de Eugenia e também da Sociedade Eugenista de São Paulo, onde Vögler palestraria sobre ?os danos da mestiçagem às nações?. Essas pontas históricas bem amarradas no livro deixam o contexto mais amargo, criando uma trilha de horrores sociais e ideológicos que veríamos retornar ao país, deixando uma trilha de mortos toda vez que se renova e chega ao poder. É verdade que essa linha de abordagem fica cansativa, no decorrer do volume, mas o motivo do por quê o autor a escolheu é compreensível.
O derradeiro capítulo de O Crime do Bom Nazista possui uma cadência narrativa estupenda. Ele traz a resolução do caso e cimenta o drama através de um flashback de conteúdo pesado, assustador e enraivecedor. No processo, consegui descobrir a surpresa escondida, mas isso não diminuiu o poder que ela teve para mim. A princípio anticlimática, a resolução do caso acaba ganhando um adendo que muda a nossa opinião sobre a trajetória investigativa e sobre o veredito do policial criminal, que parece estranho, injusto e insatisfatório.
Todo mundo que já foi ou sentiu-se indiretamente ameaçado por algum grupo violento, mesmo não fazendo parte daqueles abertamente perseguidos, encontrará neste livro o deslocamento de seu sentimento e sofrimento para os anos 1930, a bordo de um zeppelin, num processo de investigação de um assassinato. É uma das ficções históricas brasileiras mais marcantes dos últimos anos, um livro-espelho da nossa realidade recente, que conclama ao necessário e legítimo ódio aos nazistas; ao abraço àqueles que sofrem; à valorização das artes, da ciência, e ao segurar a mão dos segregados. O sofrimento, aqui, dá lugar à esperança para aqueles que são Diferentes dos Outros. Não uma esperança de quietude bovina, apolítica. Em vez disso, uma realidade que age diante das injustiças, organiza-se politicamente, vive a sua própria verdade e é feliz. Porque não há nada que irrite mais a escória nazifascista do que pessoas vivendo fora dos dogmas desumanos que eles criaram, pisoteando falsas religiões e sentindo prazer naquilo que lhes dá prazer. Sim. É isso que seguiremos fazendo.