Helder 15/06/2023Precisamos conversar sobre este livroInfelizmente nosso país está cada vez mais polarizado, mas foi a primeira vez que me senti lendo um discurso de ódio.
Peço que leia esta resenha até o fim.
Estamos acostumados a textões exalando ódio nas redes sociais. Twitter só comporta 140 caracteres. No facebook cabia mais. Mas aqui temos 280 páginas de ódio, onde eu me senti diversas vezes sendo metralhado.
Preciso dizer que encontrei centenas de características ruins neste livro, mas acho que exatamente por isso ele é um livro tão bom. Impossível sair ileso desta leitura. E que vontade de ler este livro numa LC e sentar com amigos em um boteco para discutir tudo o que está escrito aqui.
E que difícil é fazer uma resenha deste livro, pois aqui é o exemplo de “este não é meu lugar de fala” elevado a enésima potência. Ou será que não? Pois se existe um oprimido, existe um opressor. E onde existe um acusador, existe um acusado. E o leitor vai se colocar em algum destes lados.
Eu me senti num paredão lendo este livro. E o pior, me senti o alvo. Sou branco e classe média. E já tive uma empregada negra.
Por estas três características, sei que Cuandu, a narradora me odeia. Ou será que é Eliane, a autora, que é seria porque seu pai dizia “que pessoas negras deveriam ser sérias sem intervalos, porque o expaimeu estava sempre com a cara emburrada em casa. Não gostava que ríssemos para não parecermos vagabundas”.
De acordo com Cuandu não há redenção para os patrões. Se algo de bom é feito por um patrão é para ele fingir que é uma boa pessoa, pois na real, todo patrão está pouco se lixando a seu “serviçal”. Parece maniqueísta? E é. Mas isso não é demérito. Existem casos tão escabrosos citados na história desta família que é difícil não pensar em Bons e Maus.
Essa é a experiencia de vida que a narradora Cuandu nos conta em Louças de Familia, começando com uma vaquinha que precisa fazer para ajudar no enterro de sua tia, negra, mãe, evangélica e empregada doméstica a vida toda para uma família rica que acaba de morrer e não tem nenhuma poupança de vida para pagar seu funeral.
A partir da morte desta tia, Cuandu vai montando uma complexa arvore genealógica de sua família que vai voltando ao passado tanto do lado materno quanto paterno, chegando até em uma trisavó.
Um desenho da arvore genealógica na edição ajudaria um pouco na compreensão do livro, pois confesso que me perdi no meio de tantas tias e alguns tios, mas no fim o importante a saber é que todos, sem exceção, sempre foram tratados como seres inferiores por famílias brancas. SEM EXCEÇÃO!
E tenho que dizer que machuca ouvir/ ler isso.
Passei o livro inteiro refletindo sobre minha vida e tentando perceber se fui racista e até colonizador mesmo sem querer, pois de acordo com a Cuandu não existe exceção. Brancos patrões são opressores. Negros empregados são oprimidos.
E a princípio não estamos falando de escravos.
Como eu disse, este livro são 280 páginas de destilação de ódio contra o branco patrão e colonizador. E dói saber que muita coisa ali infelizmente é verdade e a gente nem percebe que estamos fazendo no dia a dia, mas muitos pontos me passam uma imagem de uma pessoa extremamente magoada e triste, o que me fez ficar em dúvida se esta é uma leitura boa e necessária ou uma leitura perigosa e panfletaria.
Outro ponto a se salientar nesta leitura é a linguagem utilizada no texto. A autora nasceu em cresceu na fronteira entre Brasil e Uruguai e é uma estudiosa sobre Amefricanidade (Procure no google), então o livro tem uma linguagem toda experimental, que mistura português, espanhol e iorubá, sem pontuações, as vezes sem letras maiúsculas, com a junção de palavras que formam palavras novas (expaimeu, minhanalista, minhancestras) ou metáforas ou símbolos para falar de coisas que podiam ser muito mais simples (Até agora me pergunto qual é o “continente da mulher que amou (ou foi estuprada por) um boi de cara branca). Isso dificulta a leitura? As vezes sim! Mas curti mais este desafio.
No fim, pensando mais no livro para escrever esta resenha tenho que dar os parabéns a autora por sua coragem em apontar e enfiar o dedo nas feridas coloniais que carregamos neste país. Gostaria que ela pudesse aceitar o meu perdão e que fosse possível colocar um ponto final e começar uma nova história com menos diferença entre protagonistas e coadjuvantes, mas ao ler este livro me surge a dúvida se existe o real interesse deste diálogo por todos os lados.
E você, o que sentiu lendo este livro?