Natasmi Cortez 16/11/2023Como pode um personagem, um simples nome em um papel, se transformar em uma pessoa tão querida para nós? Todas as minhas relações com a literatura, são em grande parte sobre as criaturas das obras. Criaturas, pois foram criadas. Quando cridas por mãos tão habilidosas quanto às de Gael Rodrigues, fazem morada em nós. Leonildo, que é ingênuo como uma criança e gentil de forma quase inumana, cativa desde o ventre de sua mãe. Um menino milagre, um amuleto de sorte.
A narrativa é absurdamente envolvente, parece que nunca temos o suficiente da história. O texto, rico em metáforas, é absurdamente bonito. É como se dentro da trama, muitas outras existissem. O enredo que acompanha primeiramente Leonildo e depois Guilherme, se desmembra em uma profusão de contextos. Esse é um livro que acima de tudo fala sobre identidade, sobre um lugar e sobre um povo. Num mundo em que muito se cobra o ter, Gael Rodrigues focou no ser. Destituídos de quaisquer posses materiais, vivendo inclusive em grande penúria, seus personagens abundam em características intangíveis. Eles pensam muito, sobrevivem como podem e sonham, ah, como sonham!
Os sonhos nos trazem esperança, são como uma bússola que nos guia além. Enquanto o corpo padece na terra, a alma flutua em paisagens oníricas, buscando refúgio e consolo naquilo que está além do imaginável. Do meio de tanta dor, o autor extrai reflexões profundas que falam ao nosso coração. É como se querendo contar uma história, ele quisesse nos ensinar o viver social. A trama transborda consciência de classe, mesmo sem falar abertamente em política. Evoca a exploração e a violência do homem branco ao chegar em terras moçambicanas, mesmo sem se debruçar em uma aula de história. Aborda preconceito, xenofobia e racismo, mesmo sem erguer qualquer bandeira. E nada disso foi necessário. A escrita sensível e dedicada, reflete o conhecimento do autor.
Chorei no ônibus enquanto lia As Grandes Navegações, de Gael Rodrigues. A segunda parte do livro, narrada por Guilherme, é uma valsa entre passado e presente. Memórias se misturam ao dia a dia dos personagens, e nessas memórias, um acontecimento bastante marcado dentro de cada um de nós: a pandemia. Guilherme, considerado alguém que está à margem da sociedade, compartilha conosco uma dor que é de todos nós, mas que ao mesmo tempo, não foi vivenciada por todos nós da mesma forma.
Ainda lembro que todo tipo de frase motivacional ou de efeito foi postada nas redes sociais para tentar dar significado ao luto de um mundo inteiro. As dores eram as mais diversas, mas eram dores. Quando Guilherme vê a melhor amiga sair pela porta, não imagina que será a última vez que irá respirar o mesmo ar que ela.
Antes apenas um verbo, respirar, virou sinônimo de vida ou morte. Milagre para quem conseguia viver mais um dia em meio ao caos, tragédia para quem se despediu dos familiares nas filas intermináveis dos cemitérios.
Para além da luta que nosso corpo travava com um vírus mortal, havia uma guerra acontecendo nos bastidores, e que é invisível para a maioria de nós. A guerra da fome, da extrema pobreza, da falta de moradia e de trabalho. Nossos personagens enfrentaram dois inimigos implacáveis, a luta pela sobrevivência foi feroz como nunca. Parte dessa batalha eu só assisti pela televisão.
Ainda me dói recordar e essa leitura reabriu uma ferida que nem bem tinha cicatrizado. Mas pra isso servem os livros, para que nossas emoções sejam remexidas e isso Gael Rodrigues fez com maestria.