spoiler visualizarBre 27/03/2024
Surpreendeu
A narrativa presente neste livro é de tirar o fôlego, é crua e muito envolvente, são duzentas e quatorze páginas por EPUB capazes de nos fazer ver as coisas acontecerem na cabeça e se questionar se realmente as histórias de vida da personagem não aconteceram de fato. Uma rápida pesquisa e logo se sabe que é realmente ficcional, mas que sim, o que é narrado é a vida de muitas mulheres trans, travestis e demais pessoas LGBTQIA+. A primeira página é tanto poética e cheia de ligações (referências) bíblicas e de mitos – como todo o livro, mas ressalvas ao início – quanto mórbida e um tanto chocante; é a protagonista contando-nos como em uma quebra de quarta parede em filmes, mas aqui mais como um diário de vida, que quando criança morava em um bairro da classe proletária onde a heroína foi utilizada como arma para varrer as ruas, e que percebeu que havia algo de estranho em si por querer beijar um lindo rapaz que acabará de morrer de uma overdose.
Ela, uma garota trans, criança que ainda desconhece o que é, tratada no masculino, mas tendo plena certeza que não faz parte do mundo heteronormativo, inicia uma contagem de sua vida desde a fase que sabe que deve se esconder – pois não seria aceita por ser diferente – até o momento em que começa a revelar-se ao mundo da maneira que pode, se vestindo de forma feminina nas ruas como qualquer mulher cis faria: sem importasse com olhares tortos. O bairro descrito (San Blas) é mencionado como o bairro das mães, pois as pessoas que chegavam eram recebidas pelas crianças, essas que deveriam estar na escola, mas que o regime público não suportava abastecer pela quantidade e que demorou anos para isso, igualmente outros recursos do lugar.
Voltando a protagonista, esta que viviam em uma família harmoniosa, mas que ao seu redor encontrava caos assim como em seu interior, tendo momentos de paz somente ao encontrar um refúgio como o banheiro de casa onde conseguia se maquiar ouvindo madonna, ou em um bairro que logo na adolescência descobriu ser “o bairro dos gays”. Depois de tanto receio, ela mergulha em seu primeiro amor e o descreve de uma forma que nos faz apaixonar-se também, seu mundo de insegurança também é repleto de desejos e adoração as mulheres que descobre em sua jornada de vida, sendo muitas delas trans, mas uma em especial a que tinha medo na infância por não compreender as imperfeições em sua pele, as marcas da vida. Ao final, quando a mulher im(perfeita) está com cancer em estado terminal, a personagem que está totalmente escondida em si, por medo de uma brutal violencia que sofreu de um homem nazista, vira a chave e resolve libertar a mulher em si, a mulher que ela é.
É impossível não ler tudo de uma vez, o livro é contagiante e embora denso em conteúdo, consegue tirar um tanto da carga com pequenos toques de humor e momentos em que se sente feliz pela personagem. É um pouco explicativo demais em alguns momentos, algo que pode incomodar um pouco a leitores experientes, mas que não chega a estragar a leitura. Às críticas válidas ao capitalismo e regimes ditatoriais não são pretensiosas aqui, não é tocado na tecla com um piano repetitivo, são pequenos dedilhados conscientes. Os personagens que vão surgindo são cativantes, mesmo que uns sejam pouco desenvolvidos por provável coerência da estória. É agradável dizer que a forma como a protagonista fala sobre sua vida e as mulheres que admira é emocionante, aquece o coração, ela narra a beleza e feminilidade como algo que as mulheres trans não tem direito de sobrepor em seus corpos e que desde sempre foi algo que glorificou e desejou. Muitas atrizes, cantoras e modelos em capas de revista são as imagens de seu altar pessoal, como as santas católicas são para as senhorinhas de seu bairro.