Quincas Borba 31/03/2024
"Mas, assim como muitos pais afetuosos, tenho no fundo...
Do meu coração um filho predileto. E seu nome é David Copperfield."
"David Copperfield" é um romance escrito por Charles Dickens, publicado em formato de folhetins entre 1849 e 1850 (mesmo ano em que foi publicado como livro). Aqui, acompanhamos a formação do protagonista titular, desde o começo literal de sua vida até a sua maturidade. No caminho, também acompanhamos as jornadas de outros personagens, que vão permeando a trama.
Antes de falar do bom, falarei do ruim. Embora eu tenha amado a história, e principalmente a escrita de Dickens, é impossível ignorar os retratos caricatos, situações que você encontraria em uma típica comédia pastelona, encontros impossíveis numa obra realista, personagens que às vezes são superficiais e vários outros aspectos. Aspectos, porém, que são tão espaçosos entre si e não tão abundantes como alguns acadêmicos gostam de pintar que não comprometem com o lado maravilhoso dessa história.
Chegou à minha atenção que esses seriam os maiores defeitos das histórias de Dickens, e não pude deixar de notar que são críticas bem elitistas que focam mais nesse pequenos absurdos do que nas maravilhosas descrições sentimentais e das críticas sociais presentes nos textos. Pode ser uma ideia de minha cabeça, a qual não darei pernas longas, mas me parece que Charles Dickens ainda é vista por alguns acadêmicos nojentos com certa hostilidade e elitismo, justamente por ter voltado sua produção literária à classe pobre.
Depois dessa pequena defesa em nome de Dickens, vamos falar de coisas boas.
Os personagens, até mesmo os de caráter unidimensional, são todos muito bons e cumprem bem o seu papel. Seja o próprio sr. Copperfield, na sua jornada para o amadurecimento, ou a simplória Rosa Dartle, cujo único traço que parece mostrar, principalmente nos últimos capítulos, é o desdém que possui pelos outros, algo que desculpo. Entretanto, todos essas pessoas são tão memoráveis justamente por toda a quantidade de páginas que David conversa, criando uma amizade com eles que, consequentemente, passa ao leitor.
Peggotty, a babá leal de David; o sr. Peggotty, irmão de Peggotty, sempre determinado; a pequena Em'ly e o falso Steerforth; o inabalável Ham; a resmungona, mas gentil por dentro, sra. Gummidge; a srta. Betsey Trotwood, sempre decepcionada com a afilhada que nunca nasceu; o sr. Dick enfrentando o fantasma de Charles I; o sr e a sra Strong e seu casamento; a realmente pequena anã Srta. Mowcher; a culpada Martha; o bondoso Traddles; a doce e boba Dora, a "filhesposa"; a venerável e gentil Agnes; os desprezíveis Murdstones; o frágil dr. Chillip; a suave e carinhosa Clara Copperfield; o adorável sr. Barkis, que está sempre disposto; Wilkins Micawber e sua esposa Emma, com seus esquemas, sempre humildes (de verdade); além de outros personagens menores, como o sr. Omer, Joram, Minnie, e tantos, mas tantos outros, todos esses personagens produziram uma impressão em mim, seja positiva e negativa, e me lembrarei com carinho deles. Confesso aqui que chorei muito, tanto na morte de vários quanto na despedida de alguns.
Talvez nenhum outro personagem além do protagonista tenha produzido uma impressão tão marcante quanto Uriah Heep, que acompanhamos desde o começo quando pequeno, e que vai se desenvolvendo como um dos grandes vilões de toda a literatura, na minha nada humilde opinião, que se esconde por trás de uma cortina de falsa humildade para manipular os outros e conseguir o que quer. É incrível o contraste entre Copperfield e Heep, ambos de origens semelhantes e humildes, e o desfecho de cada um.
Grande parte do apelo desses personagens vem da escrita de Charles Dickens, que não é tão sofisticada quanto outros autores, é bem simples na verdade, mas ainda assim consegue traduzir e expressar sentimentos que nenhum outro autor com dicionários de palavras obscuras conseguiria expressar. Mesmo com as falhas já apontadas anteriormente, isso adiciona mais ao caráter e a singularidade dickensiana. Afinal, temos que levar em conta que Dickens não escrevia apenas para sujeitos tão elitizados, como Henry James ou Virginia Woolf (que execravam a obra de Dickens, menos, surpreendentemente, por essa história em específico); Charles Dickens era o autor do povo e escrevia para todos; é por isso que encontrou grande destaque no mundo literário de sua época, desde Tolstói e Dostoievski até algumas décadas mais tarde com Kafka.
A maneira que Dickens escreve sobre a passagem dos tempos e das memórias mostra, como disse Sandra Guardini Vasconcelos em um dos três excelentes ensaios presentes nessa edição, que "David Copperfield" é, em sua essência, um romance sobre a memória e o tempo, algo que ecoará mais tarde na literatura mundial com o advento de Proust. David enxerga o passado e as situações como fantasmas, que chegam e vem; parece até um elemento sobrenatural como em vários momentos Copperfield observa as expressões e ações de personagens como se estivesse vivenciando aquilo na sua frente. De alguma forma ou outra, ele recupera o tempo perdido, seja o tempo ruim ou o tempo bom.
A grande habilidade de Dickens como escritor é principalmente nítida em capítulos dramáticos. Particularmente, no capítulo "Tempestade", que Tolstói considerava uma obra-prima. Qualquer dúvidas sobre as habilidades de Dickens e sua competência como romancista desaparecem durante essas 16 páginas (curtas comparadas à média de 25 páginas por capítulo).
Também achei nesse romance, que se encaixa no arquétipo de "romance de formação", lições valorosas sobre a maturidade e as relações entre as pessoas, que com certeza valorizarei, dado que estou dando meus passos tímidos na vida adulta, cujo sistema estarei integrado até o fim desse ano, com muito alívio (e pesar) acabando o ensino médio com 18 anos completos, pronto para entrar num mundo perigoso e incompreensível, mas já com referências para me ajudar.
Enfim, "David Copperfield" é maravilhoso.
Obrigado por ter lido até aqui.