Craotchky 20/11/2019Bastidores, curiosidades e o-que-Cem-anos-de-solidão-tem-a-ver-com-isso(Mais uma vez, assim como fiz nas resenhas dos dois volumes anteriores, usei as palavras do próprio Erico, extraídas de suas memórias Solo de Clarineta, para confeccionar este texto. Os trechos do próprio Erico além de estarem entre aspas também aparecem em itálico para aqueles(as) que estiverem lendo pelo site e na página de resenhas.)
BASTIDORES
Com frequência Erico conta, em suas memórias, que o processo de escrita de O Arquipélago foi difícil e complexo. Não foram poucas as vezes que o autor postergou a tarefa de escrever o livro, ora porque nada lhe vinha à mente, ora porque (ele mesmo admite) fugia da tarefa ao dedicar-se a outras ocupações.
Em 1953 Erico Verissimo muda-se para os EUA com a família e lá permanece até 1956 no cargo de diretor do Departamento de Assuntos Culturais da União Panamericana. Em abril de 1957, já em Porto Alegre, durante um discurso que pronunciava em um congresso, teve uma angustiante taquicardia. Era o primeiro aviso. Em janeiro de 1958 Erico e sua esposa Mafalda vão para a praia de Torres para uma pequena temporada de verão:
"Quando chegamos, chovia torrencialmente. Nossa casa ficou ilhada em meio de charcos e pequenas lagoas. A chuva continuou quase ininterruptamente durante três ou quatro dias. Assim, foi contra um fundo musical feito por um coral de sapos que escrevi as páginas iniciais do último volume da trilogia."
Continua:
"Acordava às oito da amanhã, às nove estava batendo na máquina de escrever, às onze ia para a praia, fazia a minha caminhada pela beira do mar[...]. Após o almoço[...] relia o que havia escrito pela manhã e de súbito, magicamente, entrava na dimensão do romance, e eu já não era mais eu, mas sim, alternadamente, Rodrigo, Floriano, Toríbio, Maria Valéria, Flora, Tio Bicho.."
Erico retorna a Porto Alegre em março e continua a trabalhar em O Arquipélago. Logo entra o inverno durante o qual Erico continua a escrever. Porém, no início de 1959 Erico interrompe o trabalho para uma viagem à Europa:
"Em meados de fevereiro de 1959 embarcamos para Portugal num navio italiano. As dramatis personae de O Arquipélago foram mais uma vez postas em câmara frigorífica, mas eu levava a bordo comigo uma personagem viva que me interessava e intrigava de maneira particular: meu filho [Luís Fernando Verissimo]."
Após perambulações pela Europa, Erico e família vão para os EUA onde o autor faz tentativas fracassadas de dar continuidade ao livro:
"O que eu não coseguia divisar era Santa Fé e as personagens de O Tempo e o Vento, e isso me preocupava. [...] Não conseguia escrever uma linha sequer..."
"Muitas vezes, estendido num sofá, depois de passar várias horas na vã tentativa de entrar em Santa Fé e no Sobrado, eu ficava a pensar outra vez no tempo que se arrastava e se perdia para sempre e chegava a senti-lo de forma concreta como um peso sobre o peito."
Aos poucos o autor volta a escrever; de volta ao Brasil, trabalha intensamente no livro durante o ano de 1960:
"O sol do Rio Grande conseguira degelar por completo Santa Fé e seus habitantes, restituindo-os à vida. E eu voltara a frequentar o Sobrado, como amigo íntimo e confidente dos Terra-Cambará."
Entretanto, em 1961, o trabalho é interrompido novamente por conta do infarto que acomete o autor e faz com que ele fique sessenta dias em regime de repouso. Neste ponto Erico faz curiosas confissões:
"Ninguém pronunciava a palavra enfarte. Eu queria aceitar a explicação que Faraco [seu médico]
me dava - para não me alarmar - de que eu havia sido vítima duma 'crise hipertensiva'."
"[...] um jornal e uma estação de rádio haviam anunciado que eu falecera. Tive o bom senso de não acreditar na notícia..."
"Destruí o primeiro capítulo, o em que Rodrigo sofre seu edema pulmonar agudo, e reescrevi-o por inteiro, usando da experiência adquirida durante a minha própria doença."
Recuperado, Erico finalmente conclui O Arquipélago em março de 1962. No total foram mais de 1600 páginas datilografadas.
CONFISSÕES/CURIOSIDADES
"Vinham-me de vez em quando grandes dúvidas a respeito da estrutura e do ritmo de O Arquipélago. Talvez eu tivesse dado no pão do tempo histórico do Rio Grande do Sul uma mordida maior que minha capacidade de mastigar e digerir."
"Depois que publiquei O Arquipélago, muitos leitores quiseram saber se a personagem Floriano Cambará é autobiográfica. Ora, parece-me ter deixado claro que, no que diz respeito a fatos, nossas vidas diferem muito uma da outra. Nem todas as coisas que aconteceram a Floriano aconteceram a este contador de histórias. Poder-se-ia dizer, isso sim, que psicologicamente Floriano e eu somos irmãos gêmeos ou sósias."
Última curiosidade: Na página 269 de O Arquipélago volume II aparece um certo major Nestor Verissimo, e para não deixar dúvida, o bagual é de Cruz Alta. Bem, Nestor Verissimo é um tio de Erico. Nestor, conta Verissimo, realmente foi guerrilheiro e tomou parte em batalhas e até mesmo na Coluna de Prestes.
O QUE CEM ANOS DE SOLIDÃO TEM A VER COM O TEMPO E O VENTO
Não é muito difícil perceber que há muitos elementos em comum entre O Tempo e o Vento (1949-1962) e Cem Anos de Solidão (1967). De fato, nas duas obras, por exemplo, temos a fundação e história de um povoado: Santa Fé/Macondo. As duas histórias giram em torno de uma família: Terra-Cambará/Buendía. Nas duas famílias é comum, ao longo das gerações, a repetição de nomes entre seus membros. Há também, nas duas obras, mulheres que se destacam pela força e que vivem muitos anos.
Curioso com todas essas semelhanças, fui ao Google pesquisar sobre essa aparente ligação e o resultado foi o seguinte: descobri que existe até mesmo um TCC com o tema: "O TEMPO E O VENTO E CEM ANOS DE SOLIDÃO: SAGAS EM CONTATO". Mais: logo no princípio deste TCC o autor conta que Gabriel afirmou ter estudado a saga de Verissimo para escrever Cem anos de solidão! Aponta como fontes desta informação a Revista Cult e um livro do próprio Márquez chamado Me alugo para sonhar. Indo mais fundo nas pesquisas encontrei elementos suficientes para acreditar na veracidade da informação. Para quem quiser verificar pessoalmente ou saber mais sobre o assunto, eis alguns links:
TCC citado: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/26889
Artigo da Revista Cult ano VII número 86, citado como fonte secundária (Este artigo cita inclusive as seguintes palavras ditas pelo próprio Gabo: "Coño! O tempo e o vento foi um dos três livros que estudei para escrever Cem anos de solidão. Verissimo foi genial ao manejar a saga de uma família através dos tempos."): https://revistacult.uol.com.br/home/a-saga-que-se-move/ (Leia online)
Livro Me alugo para sonhar, de Gabriel Garcia Márquez, citado como fonte primária: https://www.skoob.com.br/me-alugo-para-sonhar-7732ed8983.html
Outra edição do mesmo livro: https://www.skoob.com.br/como-contar-um-conto-16740ed18134.html
Chega, não vou escrever uma conclusão pois este já é o maior texto que publico aqui e tenho que terminá-lo sem mais delongas. Mentira, não vou escrever uma conclusão pois não gosto de despedidas. Explico: agora que já li todos os romances produzidos por Verissimo para onde vou?! Fim da linha. Não vejo mais nenhum romance inédito de Verissimo quando olho para meu horizonte de possibilidades. Muito triste. Só me resta revisitar sua obra no futuro. Bem, viva Erico Verissimo!, viva meu autor nacional favorito!