Gabriel.Maia 12/08/2022
Era só um cisco no meu olho, juro...
Esse é um exemplo raro de livro que quase me fez chorar. Ainda continuo com meu título de nunca ter chorado com nenhum livro mas admito que quase perdi com esse. Esse é um livro muito bem falado, um grande clássico da literatura nacional e é uma história autobiográfica do autor, que passou sua infância difícil no Rio de Janeiro das décadas de 20 e 30 do século passado, e nos encanta com as peripécias de Zezé, um menino de 5 anos que tem o diabo no corpo e passa muito tempo no seu mundo de fantasia conversando com seu pé de laranja lima.
Zezé tem uma vida difícil, sua família é muito pobre e, como era costume nessa época, muito grande. Ele é um menino muito inteligente, faz perguntas toda hora para qualquer pessoa e adora aprender palavras difíceis com seu tio Edmundo, um homem sábio e um dos únicos da família que tem paciência para as perguntas de Zezé. No começo da história a família está se mudando para um bairro mais pobre pois o pai perdeu o emprego e eles precisam cortar gastos. Nessa nova casa tem vários pés de fruta no quintal, e os irmãos discutem para decidir qual pé será de quem, e Zezé por ser o segundo mais novo acaba ficando com um pequeno pé de laranja lima que ainda nem dava flor, porém mal sabia ele que ali acabava de nascer uma grande e estranha amizade.
Como eu disse antes, Zezé tem o diabo no corpo. Não literalmente, óbvio, mas ele faz tanta bagunça e apronta tanto com seus vizinhos e familiares que todos acabam falando que o "filho do seu Paulo" tem o diabo no corpo, e o próprio menino replica isso sem papas na língua para qualquer um. Para nós leitores é difícil entender esse lado arteiro de Zezé, pois passamos o livro todo na cabeça criativa e curiosa dele e sabemos o quão incrível e precoce é essa criança. Nem o próprio Zezé sabe explicar o que acontece, ele simplesmente vê uma chance de fazer arte e o diabo baixa no corpo dele dando-lhe a coragem necessária para tal feito, e o coitado sempre acaba apanhando muito de suas irmãs e principalmente de seu pai.
Seu pai nos é apresentado como um típico pai de família provedor dessa época, e como está sem emprego ele acaba se tornando um homem amargo e impotente, e acaba descontando boa parte dessa frustração nas surras em Zezé que entende o que está acontecendo financeiramente na família porém não compreende o porquê de ser tão judiado, cogitando inclusive o suicídio em certo momento. Isso cortou meu coração de uma forma que vocês não tem noção. Pra um menino de 5 anos pensar essas coisas ele tem que ter sofrido muito na vida e isso fica claro a cada capítulo que se passa.
Porém, apesar de toda essa pobreza e todos esses maus-tratos, Zezé continua tendo o maior coração do mundo e isso nos enche de júbilo enquanto acompanhamos sua curta história. Ele tem muita paciência com seu irmãozinho mais novo, Luís, e a relação dos dois é uma das coisas mais lindas que tem nesse livro. É no mínimo nostálgico ver Zezé levando Luís para o "zoológico", que era o galinheiro de sua casa ou para a europa e a amazônia, que estavam logo ali no quintal.
Outra relação, na minha opinião a mais bonita e terna do livro, é a de Zezé com Glória, uma de suas irmãs mais velhas. Godóia, como o pequeno a chama, não consegue resistir à inocência infantil de seu irmão e briga com todos na família para defender Zezé quando estão batendo nele sem a menor necessidade. Esse foi o melhor exemplo de amor entre irmão que já acompanhei em uma obra e nunca me esquecerei da parte em que Glória passa dias ao lado de seu irmão doente, sofrendo suas dores e vivendo seus medos para que o irmãozinho não ficasse sozinho.
Não posso deixar de mencionar a professora de Zezé, dona Cecília Paim, que foi uma das primeira a acreditar no potencial de nosso querido protagonista, e como presente recebe uma versão totalmente diferente de Zezé, uma versão que não tem vontade de fazer coisa errada ou xingar palavrão, e que apesar de ser o mais novo da classe é também o mais inteligente e esperto. O coração de Zezé é tão gigante que ele percebe que todas as professoras recebem flores, menos a sua, e leva uma flor linda para que ela coloque em seu copo, e o desenrolar dessa cena me deixou com o peito apertadíssimo. Há mais uma relação importantíssima nesse livro mas não vou comentar nada sobre, vou deixar que vocês leiam e descubram por si próprios.
Eu não tenho nenhuma ressalva ou crítica a essa obra maravilhosa. A ambientação podia ser um pouco mais imersiva mas eu entendo que esse não era o foco então nem entrarei nessa questão. Os personagens são muito bem construídos, todos com uma personalidade marcante e própria, e consigo me sentir na pele do autor descobrindo um mundo tão incrível e ao mesmo tempo tão assustador. É encantador acompanhar a cabeça de Zezé, suas aventuras no velho oeste americano, seus passeios pelo zoológico e pelo mundo, e principalmente suas brincadeiras com minguinho, seu pé de laranja lima, que fala com Zezé e o ajuda a passar por essa fase de mudanças que pode ser muito marcante na vida de uma pessoa, principalmente se essa pessoa for uma criança de 5 anos tão vulnerável como é o nosso protagonista.
Enfim, livro de primeira que prova o quão linda e rica é a nossa literatura nacional. Enquanto escrevia essa resenha senti toda a carga emotiva que esse livro passa novamente e me senti obrigado a adicionar aos meus favoritos pois essa é mais uma leitura que mudou minha forma de pensar sobre o mundo, principalmente sobre a infância. Não perca mais tempo, leia essa obra prima!!