Pandora 03/03/2021Contém trechos do livroEste livro foi super recomendado pelo Yuri Al’Hanati, vloguer do Livrada com um argumento indefectível: “PQP, leiam esse livro!”
Comprei, li, amei.
Chile, anos 70. M é a narradora desta história. D, seu pai, é um caixeiro-viajante, representante da Kramp, que produz artigos de serralheira. Aos sete anos, M começa a acompanhar o pai em suas pequenas viagens a trabalho aos vilarejos, sob à seguinte condição imposta pela mãe: somente após as aulas e nas férias.
“Mas para D os tratos nunca valeram nada - tampouco para a minha mãe - , portanto na maioria das vezes passávamos em frente à porta do colégio e continuávamos rumo à estrada.”
A mãe de M, a “bela mulher”, não tinha a mínima noção do que se passava quando o pai saía com a filha de casa. Ela estava ausente, como descreve a filha:
“Dali para a frente, tudo o que aconteceu foi possível porque minha mãe estava ausente. Não porque saísse muito de casa, mas porque uma parte dela havia abandonado o seu corpo e resistia a voltar.
(...) Mas as aterrissagem não são fáceis e, na dela, minha mãe tinha perdido metade da visão do olho esquerdo.
Por esse ponto cego começaria a passar o que chamei de minha “dupla vida“.
Uma mãe inteira teria notado.
Isso a tornava irresponsável?
Acho que não; acho que, antes, a vida é que tinha sido um pouco irresponsável com ela.”
O mundo de M passa a ser o mundo dos caixeiros-viajantes, de muito trabalho, café e cigarros. Julgando-se ela própria uma vendedora, acaba inserida nesse universo, de onde extrai as bases para as analogias que cria para todas as situações.
“Recordo-me de que fui acampar, saímos para olhar as estrelas e, utilizando o Cruzeiro do Sul como referência, expliquei aos meus companheiros que o que brilhava lá longe não eram estrelas, e sim tachinhas de três polegadas com as quais O Grande Carpinteiro havia pendurado tudo no céu. Inclusive a gente.”
Nas idas com o pai ao cinema universitário, M conhece E, que terá uma grande importância na narrativa. Além de trabalhar no cinema E é fotógrafo e está atrás de “fantasmas”.
Com muita sutileza, Ferrada nos mostra a evolução precoce de M e os pequenos sinais que ela vai captando ao longo de suas experiências. Sinais que vão sendo melhor compreendidos conforme vai entrando na adolescência e as mudanças, não só íntimas como coletivas, são evidentes e iminentes.
“As coisas avançavam de acordo com um mecanismo que não podíamos deter.”
Apesar das especulações sobre o porquê da autora ter usado só iniciais para nominar seus personagens, a resposta foi bem simples: o livro é autobiográfico, os personagens são pessoas reais.
Uma pequena joia. Leiam.
Nota: A autora deu uma entrevista ao canal de Jéssica Mattos no YouTube ([Entrevista] Um papo sobre Kramp com a autora María José Ferrada), longa, mas muito boa. Recomendo.