Kramp

Kramp María José Ferrada
María José Ferrada




Resenhas - Kramp


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Pandora 03/03/2021

Contém trechos do livro
Este livro foi super recomendado pelo Yuri Al’Hanati, vloguer do Livrada com um argumento indefectível: “PQP, leiam esse livro!”

Comprei, li, amei.

Chile, anos 70. M é a narradora desta história. D, seu pai, é um caixeiro-viajante, representante da Kramp, que produz artigos de serralheira. Aos sete anos, M começa a acompanhar o pai em suas pequenas viagens a trabalho aos vilarejos, sob à seguinte condição imposta pela mãe: somente após as aulas e nas férias.

“Mas para D os tratos nunca valeram nada - tampouco para a minha mãe - , portanto na maioria das vezes passávamos em frente à porta do colégio e continuávamos rumo à estrada.”

A mãe de M, a “bela mulher”, não tinha a mínima noção do que se passava quando o pai saía com a filha de casa. Ela estava ausente, como descreve a filha:

“Dali para a frente, tudo o que aconteceu foi possível porque minha mãe estava ausente. Não porque saísse muito de casa, mas porque uma parte dela havia abandonado o seu corpo e resistia a voltar.
(...) Mas as aterrissagem não são fáceis e, na dela, minha mãe tinha perdido metade da visão do olho esquerdo.
Por esse ponto cego começaria a passar o que chamei de minha “dupla vida“.
Uma mãe inteira teria notado.
Isso a tornava irresponsável?
Acho que não; acho que, antes, a vida é que tinha sido um pouco irresponsável com ela.”

O mundo de M passa a ser o mundo dos caixeiros-viajantes, de muito trabalho, café e cigarros. Julgando-se ela própria uma vendedora, acaba inserida nesse universo, de onde extrai as bases para as analogias que cria para todas as situações.

“Recordo-me de que fui acampar, saímos para olhar as estrelas e, utilizando o Cruzeiro do Sul como referência, expliquei aos meus companheiros que o que brilhava lá longe não eram estrelas, e sim tachinhas de três polegadas com as quais O Grande Carpinteiro havia pendurado tudo no céu. Inclusive a gente.”

Nas idas com o pai ao cinema universitário, M conhece E, que terá uma grande importância na narrativa. Além de trabalhar no cinema E é fotógrafo e está atrás de “fantasmas”.

Com muita sutileza, Ferrada nos mostra a evolução precoce de M e os pequenos sinais que ela vai captando ao longo de suas experiências. Sinais que vão sendo melhor compreendidos conforme vai entrando na adolescência e as mudanças, não só íntimas como coletivas, são evidentes e iminentes.

“As coisas avançavam de acordo com um mecanismo que não podíamos deter.”

Apesar das especulações sobre o porquê da autora ter usado só iniciais para nominar seus personagens, a resposta foi bem simples: o livro é autobiográfico, os personagens são pessoas reais.

Uma pequena joia. Leiam.

Nota: A autora deu uma entrevista ao canal de Jéssica Mattos no YouTube ([Entrevista] Um papo sobre Kramp com a autora María José Ferrada), longa, mas muito boa. Recomendo.
vera 08/03/2021minha estante
AHAHA eu tambem li por causa da "resenha" do Livrada :D


Pandora 02/04/2021minha estante
Gostou, Vera?


vera 14/04/2021minha estante
Gostei sim!!!!!!!!!!!!


Pandora 14/04/2021minha estante
:)




Mari 17/06/2021

Kramp é uma leitura bastante fora do comum. Um livro pequenino, pra ler de uma vez só, poucos personagens, nenhumar reviravolta mirabolante. Mas, quanta coisa coube nesse microuniverso criado pela autora!
Parece uma colcha de pequenos fragmentos, fios de metáforas, finamente costurados através da narrativa das lembranças de uma infância bastante inusitada da personagem principal: uma menina de sete anos que atravessa experiências geralmente não relacionadas à sua idade, numa atmosfera quase de realismo fantástico, contrariando convenções, descobrindo dobras sutis da realidade.
Difícil falar sobre o livro. Acho que o mais interessante sobre ele é justamente as sensações, bastante subjetivas, que é capaz de despertar em cada pessoa leitora.
Leitura recomendadíssima, que certamente, renderá várias releituras.
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Toni 16/03/2023

Leituras de 2022

Kramp [2017]
María José Ferrada (Chile, 1977-)
Moinhos, 2020, 96 p.
Trad. Silvia Massimini Felix

Kramp é um livro gigantesco apesar de suas pouco menos de cem páginas. Grandioso, embora não seja mais que um apanhado de lembranças de infância e adolescência. Inesgotável, apesar do estilo econômico e das cenas breves, beirando a secura ou o minimalismo. Conta-nos do arranjo secreto entre uma filha e seu pai, caixeiro-viajante, e do universo social e das visões de mundo apreendidos com essa convivência quase clandestina, longe da aprovação de uma mãe que ignora que a filha não está frequentando a escola para ajudar o pai a vender produtos de um catálogo da marca Kramp.

Essa “falta de atenção” por parte da mãe não é injustificada e se relaciona (dito de uma maneira para não dar spoiler) à ditadura chilena. Das “cidades cheias de fantasmas” às constatações de que “a precariedade tivesse nos acompanhado desde sempre”, a narrativa de “M” (todas as personagens são referidas por uma inicial) oferece um ponto de vista movente e peculiar sobre o pano de fundo da repressão, ao mesmo tempo alienado e inadvertidamente envolvido com as formas de resistir aos mecanismos institucionais de esquecimento. Apesar de não ser narrado por M quando a mesma era criança (a narrativa é um olhar para trás da protagonista já adulta), o romance conserva a abertura ao mundo sem filtros típica da infância, bem como as ambiguidades de um relato testemunhal que reconstrói o sujeito do testemunho à medida que as memórias do trauma coletivo são elaboradas.

Aferrada aos valores adquiridos no tempo em que viajava de uma cidade a outra vendendo produtos Kramp com o pai, M também aprenderá que “as coisas avançam de acordo com um mecanismo que não podíamos deter”. Na fatura da obra (que, como já disse, por ser breve precisa de atenção redobrada) é a elaboração que permite a M se distanciar do destino do pai, “um ser humano ao qual o tempo havia deixado numa espécie de parêntesis”. Dessa percepção, a narradora conquista não só sua liberdade, mas também a solidão inerente ao desafio de se caminhar livre pelo mundo.

#kramp #mariajoseferrada #moinhos #literaturachilena #ditadura
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Leila 26/07/2022

Gentenn, para tudo!

Estou apaixonada por esse livro ❤️ Como se pode falar tanto em 90 páginas? Cara, sério mesmo, vá ler esse livro!!!
Vamos ver se consigo me explicar, porque sou dessas, quando gosto muito de um livro tenho dificuldades em me expressar (parece que é mais fácil quando não gosto, rs). Em Kramp temos personagens nomeados através de letras, M, D, E e etc vivendo no que poderíamos chamar de "mundo" paralelo, mas não, só é a vida de M, uma criança que vai se desenvolvendo a partir das vivências com seu pai, um caixeiro-viajante que vende parafusos, porcas, olhos-mágicos e etc da marca Kramp. Esse pai inconsequente (palavras usadas durante o livro) deixa a filha faltar à escola, fumar cigarros e ainda a usa para "encenar" e o ajudar em suas vendas nas cidadezinhas e povoados, pior, ainda a empresta para outro amigo, também caixeiro-viajante.
Ir percebendo a vida de M, sua relação com esse pai amalucado, a mãe ausente (que ao que tudo indica sofreu algum trauma no passado e vive num alheamento da realidade imersa numa tristeza profunda), ver pelos seus olhos de criança sua percepção de tudo é simplesmente fantástico. A gente se envolve de uma forma incrível, porque o livro vai ganhando densidade conforme as situações vão se complicando, se tornando difíceis, quando nós leitores, do lado de cá entendemos o quão inadequada e solitária é a vida dessa criança...mas ao mesmo tempo nos pegamos constantemente com aquele sorriso no rosto com as tiradas de M e suas epifanias, sua inteligência, sua sagacidade e toda a sua inocência. Aqui abro um parênteses para o fato da queridíssima Maria Jose Ferrada ser autora de livros infantis e creio que muito desse seu dom de contar histórias lúdicas é responsável por nos cativar e encantar tanto quando da nossa leitura.
É muito massa acompanhar M amadurecendo, se adaptando às realidades que a vida vai impondo. Nesse ponto o livro poderia ser dramático, pesado, porque os temas trazem isso se você leitor interpretar a fundo tudo o que é abordado na obra (negligência parental, ditadura, depressão...), mas mesmo assim, ainda é leve, ainda é delicioso de ler.
Enfim, com certeza esse pequeno grande estará na minha lista de melhores leituras no final do ano ❤️
Debora 26/07/2022minha estante
Muita gente ama este livro. Eu só acho ok, não me pegou muito menos arrebatou...rs


Leila 26/07/2022minha estante
eita! é raro, mas acontece sempre, kkkk


Debora 26/07/2022minha estante
Vc bem sabe...rsrs


Eloiza Cirne 07/12/2022minha estante
Ja para a lista (infindável) de desejos




Luciana 20/06/2021

Esse livro tem o peso da vida e a leveza dessa mesma vida pelos olhos de um criança.
Livro curto que vale muito a pena ser lido.
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Angela 29/06/2021

O livro é narrado sob a ótica infantil de M, uma menina de sete anos, filha de um caixeiro-viajante, contando a história de como ela começou a trabalhar com o seu pai para vender produtos da marca Kramp.

M decide ser ajudante de caixeiro-viajante quando ouviu a história da alunissagem pela primeira vez. Uma garota determinada, M sempre estava dizendo que tudo era possível (fazendo uma referência a Neil Armstrong quando pisou na lua). Ela então convence o seu pai, ele aceita, e dentro de um carro velho, os dois começam a sair em lojas nas cidades vizinhas vendendo os produtos.

A partir daí, o leitor entra num contato íntimo com a vida dos caixeiros-viajantes, trabalhadores que precisavam a todo custo vender os produtos para ganhar dinheiro. É revoltante acompanhar M (uma menina criança) fazendo parte de um mundo masculino. (Essa foto emblemática da capa diz demais sobre a protagonista e a época em que se passa a história, mas por um instante eu cheguei a pensar que fumar é o menor dos problemas na vida dela).
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A narrativa traz elementos autobiográficos da vida do pai da autora, que viveu nesse ofício de caixeiro-viajante nos anos de 1980 e 1990, no Chile. Aparentemente é uma narrativa simples, comum, mas em menos de 100 páginas, a autora aborda a Ditadura Militar (de Augusto Pinochet), tratando dos desaparecimentos políticos no país, violência de Estado, relação entre pais e filhos, rupturas na família; depressão de uma mãe, uma infância negligenciada, roubada; a precariedade da vida e na convivência entre o governo e a população e fragilidades humanas.

O que mais me impressionou é como a memória da personagem é trabalhada, principalmente nos capítulos finais. Ela transforma uma história simples numa complexidade sobre o tempo, afetividade, distanciamento, complexidade sobre a vida. Kramp tem um enredo forte narrado com leveza, delicadeza.
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(Normalmente eu não costumo gostar de livros narrados por crianças, porém Kramp me transformou. Não faz muito tempo que concluí a leitura, ainda estou formulando algumas questões que estão surgindo, mas é um livro inesquecível – já quero fazer releitura. Tornou-se um dos meus livros favoritos).
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DTG 15/05/2021

80 páginas de camadas
Matar aula e ir vender ferramentas por povoados. Que pai deixa a filha cometer essa loucura aos seis anos de idade? Um caixeiro-viajante que quer vender mais produtos. Pode parecer que essa é uma história leve, mas as linhas são pesadas e trazem vários temas para discussão. A companhia da filha pode significar proteção nas viagens.

Mesmo com pouca idade M compreende o mundo de uma forma psicológica e objetiva. Ela trabalhou cedo, perdeu o interesse pela escola, mas foi exploração ou preparação?

Mãe ausente, perdida em seus pensamentos. Ela é distante pelo passado, mas não há culpas e julgamentos. O pai não exerce seu papel, mas é um excelente patrão, que a introduz ao mundo dos negócios, da arte e da cultura.

A família parece não ter vínculos fortes, mas os três habitam um mundo ditatorial e perigoso. Pouco se fala sobre pessoas e lugares. O Chile de Pinochet muda a forma como as pessoas se relacionam e enxergam a vida.

Sem aprender a criar relações estáveis e ?normais?, a menina vive vínculos leves e flutuantes. Ela aprendeu a entender o mundo olhando pela janela antes dos quatro anos de idade.

A autobiográfica história de María José Ferrada é prato cheio para discussões sobre a sociedade e a vida. Não há raiva, rancor do que aconteceu. A obra é um relato profundo do que M viveu.

Ps: na última página existem lembretes, que são diferentes, nas versões impressa e digital. São verdades para os brasileiros.
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Vinder 04/11/2023

O livro conta a história de uma pequena família chilena, algumas décadas atrás, com relações instáveis e frágeis. A menina acompanha o pai, caixeiro-viajante, enquanto sua mãe fica em casa? até que ocorre uma tragédia?
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Cida Luz 02/03/2024

Em poucas páginas muito conteúdo!
Nesse Romance premiado de Maria José Ferrada que narra a história de uma menina a M que viaja com o pai comerciante pelo Chile dos anos 1980, é uma leitura rápida de poucas páginas mas de um conteúdo intenso e com muitos temas envolvidos!

Uma história envolvente, M que expõe a fragilidade das relações e questionamentos sobre um universo que parecia tão bem ordenado, na visão da pequena principalmente! Bem como a relação com seu pai!

Apesar de ser um livro de poucas páginas que favorece ler em uma sentada eu saboreie em 3 dias lendo e relendo então sim, gostei muito do livro e indico!
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Matheus656 11/06/2023

Ambientado durante a ditadura de pinochet, ?kramp? narra a história de ?m?, uma menina de oito anos, e do seu pai ?d?, um representante da empresa de marcenaria kramp que viaja de cidade em cidade para vender seus produtos. ?m? acompanha o pai em seus trajetos, faltando às aulas e aprendendo lições valiosas sobre a vida, enquanto sua mãe, uma mulher distante e melancólica, permanece distante.

antes de mais nada, ?kramp? é uma narrativa sobre a vida e sobre como a solidão nos envolve, além de abordar o tema do ?fim das coisas?, em especial, dos relacionamentos que gradualmente se desvanecem.

a narradora do livro é extremamente carismática, combinando a inocência de uma criança com a sabedoria de uma viajante que enxerga em tudo uma oportunidade de aprendizado. embora curto e geralmente lido em uma só sentada (o que aconteceu por aqui), o livro exige bastante tempo para ser digerido.

os diálogos são breves e os capítulos curtos, mas as passagens e os devaneios são extremamente precisos. a personagem ?m? é psicologicamente bem construída e apresenta observações interessantes sobre a sua realidade e sobre a realidade dos que convivem com ela. maría josé ferrada tem um estilo de narração peculiar que torna a leitura precisamente fluida e envolvente.

?kramp? é uma história forte e impactante, mas contada com leveza e delicadeza. a narrativa em primeira pessoa é impecável, evidenciando sutileza, demasiadamente a melancolia e a beleza nas pequenas impressões do mundo.

um livro potente e com uma narrativa forte que realmente impressiona. sem dúvidas um dos melhores do ano.

recomendo muitíssimo a leitura.
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mateuspy 16/06/2021

A foto de uma criança fumando...
raramente é positiva. Costuma ser vinculada a perda da infância e zaz e zaz. Trabalhando em uma livraria, percebi que a capa do livro tira o interesse de muitos leitores, o que para mim é uma tristeza e uma felicidade ao mesmo tempo. Triste pois impede o interesse de se deparar com o conteúdo riquíssimo e fluido do livro. Feliz pois, por esse preconceito, acabei lendo ele despretensiosamente. Fui abrir o livro por curiosidade e não consegui largar. A foto da capa combina perfeitamente com o tom do livro. Sim, é uma criança fumando. Mas você viu o sorrisinho no rosto dela? O olhar? Enfim, a resenha ficou estranha, mas vale muito ler esse livro.

Além disso, queria comentar uma impressão geral sobre a literatura chilena contemporânea. Os (poucos, confesso) livros chilenos atuais que li parecem sempre, em maior ou menor grau, exercer um esforço de lidar com a sombra da ditadura de Pinochet no contemporâneo. Acho isso muito semelhante a muito do que tenho visto na literatura brasileira pós 2014.
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Rafael Mussolini 24/06/2021

"KRAMP" de María José Ferrada (Editora Moinhos, 2020) é um livro aclamado. Foi vencedor do Prêmio de Melhor Romance do Círculo de Críticos de Arte, do Prêmio de Melhores Obras do Ministério da Cultura e do Prêmio Municipal de Literatura em Santiago. Todos esses feitos foram alcançados nesse que foi a estreia de María Ferrada no gênero romance. Ferrada até então havia se dedicado mais aos livros infantis. Com uma escrita acessível, questionadora, irônica e poética a escritora nos insere na dinâmica de uma relação familiar nada convencional.

"Unidos por um catálogo de produtos de serralheria da marca Kramp e viagens num Renault velho por estradas, povoados e cidades, uma filha cresce ao lado de seu pai, caixeiro-viajante, a aprender ensinamentos sobre o mundo e a vida. Da infância à adolescência, M narra seus aprendizados e o correr dos anos, até o evento que marca uma ruptura na família, acionando o dispositivo dos sintomas parentais e outras rupturas e mais questionamentos sobre o universo e as peças que não se encaixam, as dores desparafusadas que se acumulam, e o revelar das engrenagens discretas do afeto rangendo no crescer da sua maturidade."

Em Kramp, acessamos as memórias e a visão de mundo de uma menina de apenas 7 anos que só é nominada como M e diferente da grande maioria das histórias, a devoção e o afeto de uma filha perante o pai, aqui chamado D, assume outras formas e manifestações que desafiam o senso comum. É nítida a existência de um afastamento, de uma barreira entre os dois, que parece ter vínculo com o passado desse pai, e a forma que pai e filha encontram de se aproximarem e demonstrar afeto é fazendo com que um se insira no mundo do outro. O pai vive para o trabalho e a menina sabe que para fazer parte de seu mundo teria que fazer parte de sua rotina. Ela começa a trabalhar com ele sem conhecimento da mãe e isso, é claro, promove um afastamento da escola e um pacto entre os dois.

"E minha mãe, minha mãe era uma pessoa taciturna. Porém, agora que penso bem nisso, não era taciturna. Simplesmente estava triste e a tristeza não lhe permitia prestar atenção nos detalhes."

A menina M narra então a história desse ponto de vista. De uma menina que tem um pai cacheiro viajante, gozando de uma espécie de liberdade que permite com que ela veja e analise o mundo de outras maneiras, mesmo em plena efervescência da ditadura chilena. Em "Kramp" vemos uma espécie de rompimento com o método da escola que é muito simbólico, uma vez que viajando de vilarejo em vilarejo, tendo contato com diversos tipos de pessoas, situações e mais as demandas de "trabalho", nossa narradora acaba embarcando em um processo de conhecimento que também é muito válido - o conhecimento de mundo pela experimentação da vida. Percebi no livro um embate entre a teoria e a prática, entre a observação e a experimentação.

A capa da edição brasileira foi muito perspicaz e corajosa ao jogar no mercado uma imagem que trás uma criança fumando. A imagem de uma criança fumando gera confusão e desconforto, mas também chama atenção para a temática do livro. Na história nossa narradora começa a fumar muito cedo, entre os sete e os oito anos, e essa era uma realidade ali pelos anos 80 onde se você não era fumante, era fumante passivo e não existiam campanhas anti fumo. O fato da garota fumar também serve para ambientar a história ali no Chile de Pinochet e no modelo de vida dos caixeiros viajante, onde o politicamente correto praticamente não existia. Para conseguir uma venda esses vendedores ambulantes faziam quase de tudo, inclusive criar narrativas tristes e não verdadeiras para tirar lucro de uma possível empatia. Fumar era uma das formas de M se igualar ao pai e aos homens, também caixeiros, que cruzavam seu caminho. O fumo da garota também representa um excesso de liberdade, que na infância tem seus pontos negativos. É uma liberdade que caminha lado a lado com a negligência.

Mas o ponto focal do livro, é percebermos enquanto leitores, como a visão de mundo da menina vai se constituindo através da sua realidade. O pai e a filha vendiam pregos, martelos, serrotes, maçanetas, olhos mágicos da marca Kramp e tanto o catálogo de vendas, quanto as demandas de trabalho e as estratégias para se vender cada vez mais, vão servindo de instrumento para a garota entender o funcionamento das coisas. A maleta do pai deixa de ser apenas uma ferramenta e a menina passa a ver o mundo como uma grande engrenagem gerida pelo Grande Carpinteiro.

"O funcionamento dos ecossistemas, a lei de causa e efeito, a relatividade, "tudo pode ser entendido quando se olha para as gavetas de uma loja de ferragens", dissera D. "E também para serras e os martelos que ficam pendurados na parede", acrescenta."

A menina e seu pai, apesar de enfrentarem as mazelas e as debilidades do mundo e principalmente da vida de trabalhadores, parecem viver em um mundo paralelo, um mundo muito circunscrito a suas próprias regras. "As vendas, como todo trabalho, eram um sistema de sobrevivência. E, como a maioria desses sistemas, não era suficiente para que um ser humano sobrevivesse até o final do mês, e sim até mais ou menos o dia 15."

A menina que só tem contato com o pai e com os demais caixeiros viajantes e suas histórias mirabolantes, passa então a entre um cigarro e outro, uma vila e outra, a buscar sentido à existência. M que é fascinada pela incursão do homem a Lua, passa a utilizar das suas regras de mundo como uma grande engrenagem de porcas e parafusos para pensar o universo. Esse fascínio também foi herdado do pai que acompanhou a transmissão do processo de alunissagem pela TV.

Se tudo era possível era porque existia uma grande engrenagem que permitia isso. A partir desse ponto a grande sacada da narrativa é o fato de que nossa narradora vai começando a perceber que as engrenagens da vida também podem nos surpreender, que o mecanismo das coisas do mundo pode ser impreciso, que também precisam de manutenção para seu pleno funcionamento e que sempre vamos nos deparar com um parafuso mal colocado, com uma porca que perdeu a pressão e que "um único parafuso pode precipitar o fim do mundo." As referências aos objetos com que trabalha aparece o tempo todo, e por vezes, de forma muito poética, quando M compara as estrelas a uma infinidade de tachinhas, quando ela diz que a sua relação com o próprio pai é de 6 milímetros.

Kramp faz um registro importante sobre a função da memória. Além de conhecermos fragmentos sobre o passado da própria família de M, nos deparamos também com fragmentos de acontecimentos e tragédias vinculadas à ditadura do Chile. Como o livro é narrado por uma criança as questões relacionadas à ditadura aparecem de forma mais sutil, mas que demarcam muito bem sobre a importância da memória, da própria fotografia e da resistência para manutenção da memória e para a possibilidade de se fazer justiça aos desaparecidos. Esse contexto pelos olhos de uma criança cria um universo interessante para a história.

"O que quero dizer é que cada pessoa tenta explicar o mecanismo das coisas com o que tem em mãos. Eu, aos sete anos, tinha estendido a minha e topado com o catálogo da Kramp."

A narrativa em primeira pessoa da María José Ferrada é impecável. Partindo de uma vivência nada convencional de uma criança que nos mostra grandes conhecimentos sobre a vida e o universo, em paralelo ela nos mostra que a tônica da solidão, do afeto, do abandono e das referências não deixam de ser fundamentais para a formação de uma criança. O livro rompe com a idealização da infância, pois o ato de crescer e se ver parte de um todo é algo confuso e por vezes doloroso. É entendendo a dinâmica do sofrimento que criaremos crianças mais fortes para lidar com as pesadas engrenagens que sustentam o mundo.



site: https://rafamussolini.blogspot.com/2021/06/kramp-de-maria-jose-ferrada.html
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Carla.Fernandes 01/02/2023

Surpreendente
Esse livro é um soco no estômago. É uma reflexão sobre as fragilidades humanas. A foto de capa me chocou em primeiro momento, mas me instigou, me deixou curiosa. E lá fui eu procurar saber do que se tratava. Uma menina que descobre as dificuldades da vida, ainda muito pequena. Possui várias passagens marcantes. É um livro que quero ler de novo daqui um tempo.
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Picón 04/08/2021

Bom e curto.
Nos dois terços iniciais da obra temos o ponto de vista de uma criança e sua relação com o mundo ao seu redor. Podendo ser considerada um gênero, a narrativa do ponto de vista pueril geralmente é bem carismática por conta de sua ingenuidade e muitas vezes comicidade. E aqui não é diferente. As analogias criativas e inesperadas que a autora cria a partir da protagonista infantil empolgam a leitura.
No terço final temos a personagem principal já entrada na adolescência, experimentando a ação da distância (temporal e espacial) nas relações e nas memórias.
Obra bem acabadinha, com pontos de autorreferência bem amarrados e algumas gotas de poesia.
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