spoiler visualizarIasmin105 23/05/2023
Em quantos bares vamos até estarmos de bar em bar?
Há momentos em que nos vemos à deriva, submerso em um mundo de fantasias que não nos corresponde. Como entender nosso papel no mundo? Ou melhor, nascemos para viver nesse mundo?
Em “De bar em bar” a ideia de “ser” é implodida por um mar de inseguranças. A protagonista Theresa Dunn é o retrato pessoal de uma menina, que se torna mulher, mas nunca deixa de ser insegura. Cresceu assim, viveu assim e, por fim, morreu assim...
A intenção do livro não é ser um mistério ou um thriller a la Agatha Christie (por mais que a autora, Judith Rossner, tivesse nas mangas todos os artifícios para tal). O feminicídio retratado desde o início do livro não é surpresa. Ocorreu e todos sabem, o autor, a vítima, as possíveis motivações, não há muito a se indagar, é o que pensa o leitor diante de um fato: houve um homicídio. O que torna a obra tão singular é a ordem, não cronológica, dos fatos.
A personagem é morta já no começo da ficção. Diante disso, embarcamos em uma viagem de descobertas. O tempo verbal se altera e vamos para o passado de Theresa. Desde sua infância até sua morte. A heroína da história teve sua vida marcada por incertezas.
Em vida, poucas coisas lhe foram palpáveis. Muito cedo, perdeu seu irmão e isso escancarou a desorganização de sua família. A perda de seu irmão nunca foi superada, uma vez que, buscava em homens, o que seu irmão poderia ter sido. Mais do que um amor, sempre quis um porto seguro. O que ela idealizava que seu irmão viria a ser, se este não tivera falecido.
No segundo ato traumático de sua trajetória, Theresa viria a descobrir uma poliomielite e mais tarde, escoliose. A protagonista projetava como poderia ser se não coxeasse, como algumas vezes é escancarado no livro. Projetava como seria não ter passado parte de sua infância dentro de um hospital recebendo tratamento. Como seria diferente sua vida se não tivesse cicatrizes, algumas visíveis e outras internas. A verdade é que nunca descobriu.
O livro embala quando descobrimos, junto à personagem, a sexualidade. A dominação e a submissão, o entendimento de que prazeres existem e não são tabus. Theresa perde sua virgindade com seu professor, muito mais velho, muito mais rico, muito mais experiente e muito mais casado. O relacionamento dura alguns anos, com grande indiferença por parte do professor, que à medida do tempo, se desinteressa ainda mais por Theresa, concluindo, individualmente a relação dos dois. A jovem nunca esqueceu do seu primeiro amor. E o caminho que ele pavimentou segue latente para a protagonista. Fora com ele que aprendeu o que sabia de sexo e ela imaginava que todos seriam como ele (e não foram).
Theresa começa a percorrer de bar em bar, ouvir histórias, fazer histórias e tudo isso com homens distintos. Com preservativo, sem preservativo, isso não importava, afinal eram os anos 60, e o que poderia ser mais interessante que o prazer?
Para Terry, o importante era uma noite de tesão e uma manhã de solidão. Ficava com homens e os despachava. Teve breves relações, mas nunca se desprendeu dos bares. Ela se fascinava pela liberdade. Uma verdadeira feminista, isso mesmo antes do feminismo ser selo do capitalismo ou pauta imprescindível. Ela já lutava pelo direito de sentir. Theresa nunca quis um namorado, do início ao fim, nunca quis. O que queria, de verdade, era alguém que segurasse a taça de vinho junto a ela e a levasse às alturas, e por fim saísse, se pudesse, trancando a porta. Não era muito, mas para o machismo era suficiente.
Theresa é violentada e morta por um homem que encontrou no bar. Seu fim é curto, simples e objetivo. No Brasil, uma mulher é morta a cada duas horas. A cada duas horas uma Theresa é morta. Morta por ser independente, morta por ser recatada, morta por ser, acima de tudo, mulher. Somos mortas e violadas, uma a uma. Duas a duas horas... é o que leva para mais uma vida de mulher ser esvaecida.
O livro é cru, sem demagogias e direto ao ponto. Se encerra com uma recapitulação dos últimos minutos de vida de Theresa. Um pedido de socorro, zero escutas e o apagamento de uma trajetória. O resumo de uma origem com um encerramento real, porque depois da morte nada mais há além das vidas que ficam.