João 02/12/2020
Diário do hospício e Cemitério dos vivos - Lima Barreto.
Não há dúvidas de que o escritor carioca Lima Barreto, ícone da literatura pré-modernista, foi um dos maiores escritores brasileiros do século XX. No entanto, o reconhecimento do público e da crítica em geral sobreveio tardiamente, postumamente.
Hoje, lendo-se não só os romances e os contos do Lima Barreto, mas especialmente suas crônicas e diários, nota-se o amor às letras, a devoção ao conhecimento, a abnegação do estudioso e a lucidez do crítico de seu tempo.
A inteligência e a sensibilidade aguda do escritor carioca pulsavam já nos seus primeiros textos literários e jornalísticos. Daí em diante a verve do autor logo ganha firmeza para consolidar o estilo crítico, satírico e erudito que tanto marcaram seus trabalhos.
No entanto, a independência e o espírito livre do autor fizeram dele um escritor marginalizado. As decisões tomadas ao longo da vida levaram o escritor carioca a traçar um caminho não convencional na cena público-literária do país. Entre outras circunstâncias que possivelmente contribuíram para o pouco prestígio do autor estão o fato de Lima Barreto se recusar a compor o círculo de bacharéis da República brasileira, acreditando antes no seu talento intrínseco, e desprezando o fetiche pelo título universitário que não deveria constituir garantia de inteligência e de talento. Só por isso, ele deve ter perdido visibilidade entre os letrados da República Velha. Some-se o fato de que Lima Barreto estava convencido de que o seu talento intrínseco deveria ser fator suficiente para a obtenção da glória literária. E por isso recusava a se sujeitar a bajulações e a quaisquer convenções que se mostrassem incoerentes com seu caráter franco e independente.
Daí decorre que Lima Barreto obteve muito pouco reconhecimento dos seus contemporâneos. Algumas importantes manifestações a seu favor vieram de escritores como José Veríssimo e Monteiro Lobato, vozes praticamente isoladas no tocante à obra do escritor. Basta lembrar que, embora tenha se candidatado três vezes à ABL, foi rejeitado em todas elas.
Lima Barreto sofreu profundamente a rejeição, ou melhor, o silêncio indiferente de seus contemporâneos. Tal situação feriu de morte o orgulho do escritor que desde a primeira infância tinha consciência do seu valor e inteligência. O autor nutriu desde muito cedo o desejo de ser grande, de realizar coisas belas e significativas no cenário das letras. Mas amargou o silêncio da indiferença, o preconceito racial e todas as agruras que daí decorrem.
Resulta, então, que machucado pela desilusão e pela desesperança, o escritor já não possuía coragem moral para suportar os dissabores do dia a dia. Os dramas familiares e a falta de dinheiro tornam-se problemas crescentes na vida do autor, selando o círculo de angústias.
No seu “Diário” fez constar: “A literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela”.
É nesse contexto que Lima Barreto torna-se um alcoólatra. E o consumo exagerado de bebidas alcoólicas passa a deflagrar crises mentais, permeadas por delírios, que levam o escritor a ser internado por diversas vezes no manicômio, por influência da família e pelas “mãos da polícia”.
E é nos momentos de lucidez, durante as internações do autor, que surgem os textos que compuseram o “Diário do hospício”.
O “Diário” contém notas e frangemos esparsos acercas das observações feitas pelo escritor. E, ao que parece, essas notas carregam o mote que dará vida e cores às crônicas posteriormente elaborados pelo autor.
Lima Barreto permaneceu - na última vez em que esteve internado no hospício – durante algumas semanas recolhido com dezenas de outros malucos e débeis mentais. Toda essa matéria humana que vai desde os inspetores, guardas, médicos e enfermeiros, até toda a sorte de mentecaptos que habitam os manicômios constituiu-se em um rico campo de observação para o escritor carioca.
O testemunho do autor não é indiferente às cenas pitorescas que marcaram sua permanência entre os loucos, cujas manias as mais diversas são capazes de despertar riso e piedade. Como é de se supor, houve também espaço para pequenas considerações acerca da loucura.
Importante constatar que mesmo machucado pela bebida e pelos delírios, Lima Barreto não abandona sua verve e seu olhar perscrutador durante os dias que foi mais um dentre os loucos no manicômio. Sequer abandonou as leituras diárias, graças a uma biblioteca de obras clássicas que guarnecia o sanatório.
As anotações reunidas no “Diário do hospício” serviram de adubo para a criação do romance inacabado “Cemitério dos Vivos”. Trata-se de um livro de memórias de Lima Barreto, fundado sob bases evidentemente autobiográficas, mas entremeados por personagens e episódios mais ou menos ficcionais, o que naturalmente conduz a uma certa confusão entre o que é ficção e o que é real.
A narrativa possui dois momentos bem marcados. Um concentrado na juventude do protagonista Vicente Mascarenhas, estudante cheio de sonhos e de ambições intelectuais. Porém, não se trata de um estudante qualquer, mas sim de um com as feições e o gênio do próprio Lima Barreto, dado ao autodidatismo, às coisas grandes e avesso à formação puramente acadêmica devotada do bacharelismo pedante; o outro momento é voltado para a ruína pessoal do protagonista, agora internado no hospício após sucessivas crises de alcoolismo acompanhadas de delírios e alucinações.
Conforme teria se passado com a vida do próprio escritor, todas essas crises por que passa o protagonista Vicente Mascarenhas guardam relação com as desgraças de ordem familiar, aliadas ao drama pela falta de dinheiro e à frustração pelo não reconhecimento do seu valor nos círculos literários.
O “Cemitério dos Vivos” agrada desde o início pela fluência e ritmo narrativos. Começa com o protagonista, à maneira de um defunto autor (para lembrar de Brás Cubas), rememorando a sua primeira mocidade. Logo, damo-nos conta de suas semelhanças com a história do próprio Lima Barreto. Trata-se assim de um personagem inteligente, honesto, com independência e sinceridade intelectual e profundamente entusiasmado com seus projetos pessoais de estudo.
Vicente Mascarenhas era, no entanto, de temperamento arredio e avesso a travar relações com as mulheres de sua geração. Sentia timidez, incapacidade e um não sei quê de medo e de receio. Jamais desejou o casamento, não se imaginava numa relação a dois. De algum modo entendia que isso poderia jogar por terra seus planos em torno de um futuro glorioso através dos estudos e das letras.
Entretanto, por força de acontecimentos improváveis (“o homem faz planos e Deus ri”), acabou casado com uma moça por quem possuía um misto de afeto e piedade.
Com a morte prematura de sua esposa, não demorou muito a perceber a falta de cumplicidade e de confiança mútua que havia entre ambos durante o casamento. Desenvolveu remorso ao se dar conta de que sua falecida esposa exercia, no final das contas, grande apoio moral sobre ele, instigando-o em seu trabalho intelectual e admirando-lhe a inteligência.
Vicente Mascarenhas é corroído pelo arrependimento, fundado no sentimento de que não soube compreender sua esposa, agora morta. Aterroriza-o, ainda, a percepção de que faltou amor durante toda a sua vida, uma vida que parece ter se desenvolvida num ambiente de extrema independência emocional e autonomia intelectual, mas cujas consequência agora eram sentidas. “ [...] não era bem a morte que eu queria, não era o aniquilamento da minha pessoa, a sua fragmentação até o infinito, nas coisas e nos seres, era outra vida, mais cheia de amor, de crença, de ilusão, sem nenhum poder de análise e isenta de toda e qualquer capacidade de exame sobre mim mesmo”.
O sofrimento do protagonista ainda é agravado pela falta de dinheiro e pelas humilhações daí decorrentes. Tudo isso o conduz à bebida. E a embriaguez contumaz desperta nele delírios e alucinações. Não demora muito para que os parentes mais próximos, com o auxílio da polícia, providenciem sua internação no hospício.
E daí nasce um novo momento narrativo calcado na observação atenta dos personagens que habitam o manicômio, desde os enfermeiros, médicos e guardas, até os seus companheiros de loucura, aqueles internos cheios de manias e delírios.
O romance é recheado de imagens literárias, de observações argutas sobre o universo circundante e pejada de referências à literatura e ao conhecimento científico em geral, próprias ao veio erudito de Lima Barreto.
Boas leituras!