Lucas 14/07/2019
O decrépito em suas mais sombrias formas
Conspirações, intrigas, psicologia, nuances policiais e/ou jurídicos, sentimentalismos, reflexões religiosas, o subconsciente como protagonista... São características intrínsecas a todas as obras de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), escritor russo que dispensa maiores apresentações a todo amante de literatura clássica. Além dos traços citados, ninguém, nem antes nem depois de Dostoiévski foi capaz de tratar na literatura de uma forma tão única das mais diversas variedades de decrepitude: seja a moral (especialmente esta), física, mental, financeira ou social, todo tipo de escopo psicossocial que forma o ser humano é tratado pelo autor na sua forma mais crua. Para Dostoiévski, o desânimo é mais importante que a disposição; a pobreza é mais narrável do que a riqueza; o ser sempre virá antes do ter.
Tudo isso é ''chover no molhado'' em se tratando do autor, mas em O Idiota (1869) ele se superou: é uma longa e profunda obra que trata de diversas características que um personagem ou ente real pode desenvolver e que são elementos de escárnio em uma sociedade materialista e preconceituosa. Neste caso, é o príncipe Liev Nikoláievitch Míchkin quem toma para si as dores de um indivíduo psicologicamente perturbado a partir da inexistência de uma sensação de pertencimento à sociedade, algo recorrente na grande maioria dos personagens dostoiévskianos.
Se em Crime e Castigo (1867), o romance mais famoso de Fiódor Dostoiévski, o protagonista possui um sofrimento mais moral do que propriamente físico (Raskólnikov buscando justificativas para um crime bárbaro e as tortuosidades causadas pelo arrependimento), em O Idiota tem-se um príncipe Míchkin com agruras bem mais palpáveis a olhos menos ''treinados'' em termos de psicologia: o protagonista aqui sofre de epilepsia, tal como o autor/criador. Mas, em se tratando de uma sociedade mais preocupada em posses e interesses financeiros, a epilepsia do protagonista acaba ficando num segundo plano: o verdadeiro ''defeito'' do príncipe é a ingenuidade, o humanismo e o olhar sempre abstrato para coisas terrenas.
A história começa numa viagem de trem do protagonista em seu retorno a São Petersburgo, após uma longa estada em uma clínica para pacientes epiléticos na Suíça. Considerando-se não mais um russo, Míchkin nessa viagem trata conhecimento com Parfen Semeónovitch Rogójin, indivíduo rebelde e de razoável situação financeira, que exercerá enorme influência sobre o príncipe. Desde as primeiras páginas, Dostoiévski deixa muito claro que o seu protagonista é um personagem totalmente peculiar até mesmo para o seu ''rol'' de personagens únicos: Míchkin é uma mistura entre Jesus Cristo e Dom Quixote, o eterno Cavaleiro da Triste Figura, do atemporal Miguel de Cervantes (1547-1616). Posto isso, sobram no protagonista elementos de bondade inocente, que muito tenta ensinar e tocar, mas que na maioria das vezes só alimenta o escárnio dos outros indivíduos ''normais'' que o rodeiam. É este escopo, inclusive, que representa o cerne da obra: uma pessoa boa, ingênua, insegura e inexperiente, que acaba sendo visto como um idiota perante indivíduos fúteis, mas providos de malandragem e maledicência.
O príncipe acaba por guiar a narrativa para outros personagens estereotipados do estilo de Dostoiévski. Dentro disso, surge aqui uma parente distante de Míchkin, Lisavieta Prokófievna, esposa do general Ivan Fiódorovitch Iepántchin, que juntos tinham três filhas: Alieksandra, Adelaida e a bela Aglaia, de importante participação ao destino do protagonista. O general possuía um secretário, Gavrila "Gânia" Ardaliónovitch Ívolguin, inteligente personagem que era irmão de Nikolai/Kólia (este último o que mais se aproxima da definição de "amigo" que o príncipe acaba fazendo). Havia também Afánassi Ivanovitch Tótski, rico senhor de terras e amigo próximo do general Iepántchin e Hippolit Tieriéntiev, jovem tísico e principal representante do niilismo típico do autor.
Este excesso de citações de nomes de personagens não tem o intuito de tornar erudita a presente resenha, mas é importante para que se demonstre um quadro geral do que a narrativa trará, sempre se ressaltando a complexidade dos nomes russos e seus patronímicos (o que não deve ser considerado um obstáculo aos menos experientes leitores de russos, se bem que não se recomenda que ele comece nesta literatura tão rica por O Idiota). Inclusive há uma miscelânea de outros personagens que estabelecem relações com estes citados e, dentro dessa menção, é importante que se destaque e pormenorize a figura de Nastássia Filippóvna, a protagonista feminina e o principal exemplo de personagem típica de Dostoiévski, cuja grande maioria das ressalvas ao longo do tempo quanto à sua escrita reside na construção de mulheres histéricas, com recorrentes crises de nervos e de alta imprevisibilidade narrativa quanto aos seus desfechos. Nastássia, rica e linda jovem muito bem quista pela sociedade de São Petersburgo, é uma síntese desse tipo de personagem, podendo ainda ser definida como alguém cheia de camadas e distúrbios psicológicos, muitos deles explicados pela sua trajetória de vida. Mesmo que não tenha tanto "tempo de páginas", o seu protagonismo é latente pela ''sombra'' que a simples menção ao seu nome causa ao núcleo principal do livro.
Dostoiévski sempre traz em suas obras (especialmente nas que foram lançadas após o seu período de reclusão, que terminou em 1860) elementos que se identificam com a camada mais pobre da Rússia czarista, sem se preocupar extensivamente em descrever a sociedade como um todo, em especial a camada mais ''alta'' em termos de oportunidade e berço. E quando o escritor insere estes elementos mais distantes do estrato mais popular, ele faz com o mesmo olhar voltado para a decrepitude. Dostoiévski não diferencia ricos e pobres ao imputar em seus personagens distúrbios físicos ou espirituais e isso acabou por mistificar a sua imagem como autor mais adorado do povo mais humilde da Rússia. Tudo isso precisa ser aqui reforçado para que se dimensione a narrativa do autor, que não tem muitos acabamentos artísticos mas que acaba, talvez até mesmo por isso, sendo inconfundível por oferecer um desnudamento psicológico dos seus personagens que jamais foi igualado. E conforme cada personagem é ''dissecado'' sob o ponto de vista psicológico, aumenta-se no leitor a sua incerteza quanto às atitudes futuras que a narrativa reserva a este respectivo personagem. Por isso surge em muitos momentos a sensação de estranheza, até mesmo de peso opressivo ao leitor de Dostoiévski: sua escrita colhe inúmeros elementos psíquicos dos caracteres principais que compõem a história, mas que jamais definem de forma objetiva e resumida a complexidade inerente ao interior de cada um.
Esse apego ao decrépito, ao vil, é explicado em momentos bem pontuais, de uma forma quase que didática. Em determinado momento, o narrador (onisciente, mas que não desenvolve uma oralidade mais direta com o leitor) explica, sob o ponto de vista de um escritor, a natureza dos personagens de um livro, dividindo-os entre ordinários e inteligentes. A forma com que Dostoiévski defende o primeiro grupo é incisiva, especialmente a quem considera a narrativa dele esteticamente deficiente. Outro exemplo singular advém de uma nota de rodapé, exposta na edição da sempre elogiável Editora 34, num trabalho excelente de tradução de Paulo Bezerra (1940-), onde se extrai um trecho escrito por Dostóievski em uma nota onde ele comenta a respeito de um brutal assassinato, que é um fato "mais interessante que toda sorte de romances, porque elucida aspectos sombrios da alma humana que a arte não gosta de abordar, e se o aborda o faz só de passagem e em forma de episódio''.
Além de toda uma abordagem psicológica, O Idiota traz em suas linhas dezenas de divagações, que tratam desde as desesperadoras sensações de quem está na iminência de um ataque epilético até a questões mais existenciais e atuais, como a pena de morte. Outro ponto discutido e muito interessante é a hipótese da "ocidentalização'' da Rússia do século XIX, onde muito se debatia a respeito do alcance e a influência que a cultura do Oeste Europeu (especialmente da França) exerceria sobre a sociedade russa. Foi, inclusive, a partir desse embate que se fortaleceu a literatura russa, que passou por um avanço muito substancial a partir da segunda metade do século XIX e desenvolveu um estilo literário próprio bem diferente daquele já consolidado no ocidente, com vieses mais românticos.
O príncipe Míchkin é um dos maiores personagens que Dostoiévski concebeu. O futuro leitor perceberá que a sua grandeza não reside nos feitos heroicos ou materiais, ou em cavalheirismos românticos, mas sim em seu olhar para o íntimo, para o interior dos que o rodeiam. Humilhado, ridicularizado e execrado, Míchkin era acima de tudo um cristão e, guardadas as devidas e óbvias proporções, lembra em vários momentos a figura mística de Jesus Cristo, cuja sabedoria incisiva ensinava e provocava revolta em que não a aceitava (ponto importante, Dostoiévski tinha muita ligação com as Escrituras, intensificadas após os seus dez anos de prisão por "agitação popular"). É importante que se sublinhe isso porque revelar qualquer detalhe da trajetória de Míchkin seria adiantar de forma desnecessária todo um emaranhado de ligações e situações que unem os personagens. A lição que fica é a de que inocência, altruísmo bondade e honestidade, quando misturados, são capazes de tornar a existência comum mais sadia, mas dificilmente passarão incólumes a um mundo que está longe de ser compreensivo ou benevolente.
Apesar disso, O Idiota, como opção geral de entretenimento, possui algumas particularidades que, se são incapazes de prejudicar a qualidade geral da obra, fazem com que ele seja um livro ''pesado'', seja moral ou até mesmo literalmente (na já citada edição da Editora 34 são quase 700 páginas). Este peso é fortalecido pela existência de vários personagens ''perturbados'', com distúrbios próprios, o que é diferente de outras grandes obras do autor, onde esses tipos são mais reduzidos. Não é, por isso, o tipo de livro a ser lido aos ''atropelos''; exige do leitor paciência e até compromisso em desfrutar das filosofias próprias contidas nas suas entrelinhas. Todavia, não se trata de um sacrifício sem sentido: a obra muito ensina e muito faz refletir, pois Dostoiévski não trata das decrepitudes só para chocar: ele mostra que, mesmo no ambiente mais pobre, no contexto mais sujo, na realidade mais histérica, há espaço para a bondade e o amor.
O Idiota foi o segundo dos cinco ''dinossauros de Dostoiévski'', livros de maior vulto e de maior profundidade literária da carreira do autor (foi precedido por Crime e Castigo, de 1867 e sucedido por Os Demônios, O Adolescente e Os Irmãos Karamázov, lançados respectivamente em 1872, 1875 e 1881). Por esse motivo, é uma obra fundamental da carreira literária do escritor e sintetiza bem toda a habilidade incomparável dele em descrever o interior dos seus personagens, usando para isso de muito humanismo, realismo e religião. Em essência, adentrar as suas linhas é ficar rodeado de angústia, desânimo, desesperança e desespero, mas sempre com um apego à redenção e ao sublime, que se revela nas mais inesperadas faces dessa robusta análise psicológica.