Tuca 17/10/2022“Enquanto isso, os moluscos do mar de Copacabana silenciavam o mundo dentro de suas conchas azul corvo. E os corvos sobrevoavam a cidade de Lakewood, Colorado. Os corvos azul concha.”Ao perder a mãe aos doze anos, Evangelina, ou melhor, “Vanja” se vê em meio a decisões. Do Brasil, ela parte para os Estados Unidos a fim de morar com o ex-marido da mãe, Fernando, para onde foi em busca de seu pai biológico, Daniel. Ela nunca conhecera Fernando, salvo quando bebê, já que sua mãe pedira para Fernando registrar Vanja como filha. Assim, Vanja foi viver com seu pai no papel para encontrar seu pai de sangue sem saber que iria encontrar uma família afetiva especial. Sem saber que iria encontrar além, iria conhecer as memórias de Fernando, ou melhor, de “Chico Ferradura”, ex-guerrilheiro do Araguaia.
As lembranças de Vanja se misturam às de Fernando. A dureza do passado dele e a melancolia do passado dela formam a ternura do relacionamento dos dois, que ainda é acrescido da inocência do pequeno Carlos, o vizinho de dez anos e imigrante indocumentado. “Azul Corvo” foi publicado em 2010, depois de a autora ter ganhado o Prêmio José Saramago em 2003 pelo livro “Sinfonia em branco” (2001), e alguns anos antes da instauração da Comissão Nacional da Verdade e de outras Comissões da Verdade, um dos pequenos passos de justiça transicional no Brasil. Sendo ele um dos países que mais tarde realizou políticas de justiça transicional e pouco faz uso de práticas de valorização da memória histórica. No contexto de uma crescente onda negacionista da nossa História, “Azul corvo” e tantos outros livros que tem como fundo histórico esse período sombrio do país, se fazem extremamente relevantes.
Narrado majoritariamente em primeira pessoa, em um discurso indireto livre, vemos um ir e vir de memórias que fogem da linearidade. Assim como talvez Fernando fuja às vezes das deles; e Vanja queira encontrá-las. É a voz de Vanja, aos 22, lembrando-se do seu eu de 13 anos, e ocasionalmente misturando e relembrando os pensamentos infantis com sua versão que já sabe onde vai parar que cria uma narrativa poética e dramática. Seu exílio se perde no de Fernando, que se junta ao de Carlos, e conta não só a história de pertencimento, mas da ausência dele. Esse é um livro para quem está preparado para ler um amontoado de tudo e nada ao mesmo tempo. Nada de grandes reviravoltas, mas o voo da vida como ela é, sendo aproveitado pela beleza da vista e pelas tantas tristezas que nos constroem. O final é rápido, poderia ter sido mais detalhado, mesmo assim, foi o suficiente para que se o leitor ainda não tivesse concluído isso, concluísse naquele momento: que nossa família somos nós quem fazemos, que nossa história somos nós que a tornamos memorável, que nosso lar não é o terreno, apesar de ser parte da constituição, nosso lar são os laços que nos unem para a construção do nosso alicerce. Somos memória, lar e família.
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