zeguilhermespp 08/02/2023
Cada qual se defendia do Peru como podia
Santiago Zavala sabe que se fodeu em algum momento, mas não sabe precisar em qual. Do alto de seus trinta e poucos anos, toca uma carreira medíocre num jornal sensacionalista, vive um casamento morno e corta um dobrado pra não ficar no vermelho no fim do mês. Sim, Zavalita sabe que se fodeu. Assim como seu país, o Peru, recém-saído de uma ditadura militar sanguinária comandada com mão de ferro por Manuel Odría. Quando Zavalita reencontra, por acaso, o antigo chofer de seu pai, um homem paupérrimo chamado Ambrosio, as duas figuras se reunem no Bar Catedral e dão início à conversa-título do livro: uma conversa que, a partir do fio das vidas dessas duas personagens fantásticas, desvenda a história social e política do Peru sob Odría.
Curiosamente, toda a conversa se desenrola no primeiro capítulo do livro, de maneira desconexa e propositalmente confusa. Pelo restante das páginas, o leitor recapitula o que foi conversado a partir de fragmentos que, apesar de inicialmente confusos, demonstram a potência da escrita de Vargas Llosa. É desafiador ler o início do livro, mas a recompensa vale a pena: uma vez acostumado, o leitor há de se impressionar com a capacidade do autor de transitar entre diferentes temporalidades, diferentes personagens e diferentes dialógos, às vezes na mesma linha, e ainda assim lograr um todo inteligível. Toda a história é narrada em terceira pessoa, mas a partir de relatos: de Santiago conta a Ambrosio ou a Carlitos, Ambrosio conta a Santiago ou a don Fermín.
Há também outras personagens fundamentais nessa teia (no total, são mais de cem). Cayo Bermúdez é um serrano rancoroso que se torna o homem forte de Odría e personifica toda a violência e a corrupção características do regime; Amalia é uma empregada leal que se divide entre seus amores; don Fermín é um burguês devotado ao filho caçula, com o qual tem uma relação complicadíssima e extremamente bem trabalhada. Todas essas figuras e muitas outras permitem que o leitor vislumbre a realidade social de Peru de muitas frentes: ricos e pobres, homens e mulheres, brancos e ?cholos?, odriístas e oposicionistas. Aqui, Vargas Llosa realiza um verdadeiro tour de force, um romance total que, como preconiza Balzac na epígrafe do livro, é uma história privada das nações.
Esta Conversa no Catedral é uma montanha que merece ser escalada. Me encantou e me assombrou na mesma medida, ora pela trama eletrizante, ora pelo texto afiado. No Catedral, Zavalita e Ambrosio desfiam as sinas e as agruras do Peru, que afinal são as de toda a América Latina.