Isabel 01/12/2012Matadouro cinco despertou minha atenção graças ao site de tatuagens literárias Contrariwise: não é raro encontrar lá tatuagens de pessoas que se inspiraram na que é considerada maior obra de Kurt Vonnegut e o melhor livro anti guerra feito por um americano.
No capítulo inicial, conta-se a história do próprio escritor, um veterano de guerra que se vê há anos tentando escrever um livro sobre o terrível bombardeio de Dresden (135 mil mortos) na segunda guerra mundial, o qual presenciou por ser prisioneiro dos alemães. Ao ir a casa de um ex colega de regimento para trocar lembranças, o autor vê a esposa de seu amigo inquieta. Eis a razão:
“Vocês eram só bebês na guerra – como os que estão lá em cima[os filhos dela]! (...) Mas você não vai escrever assim, vai? (...) Você vai fingir que vocês eram homens ao invés de bebês, e vocês vão ser interpretado em filmes por Frank Sinatra e John Wayne ou um desses homens glamorosos, sujos e amantes da guerra. E a guerra vai parecer somente maravilhosa, então nós teremos mais um monte delas. E elas vão ser lutadas por bebês como os bebês lá em cima.”
[Se você ler o livro e não chorar lendo esse trecho, você não tem coração.]
O aviso da jovem senhora, real ou não, entrou bem na cabeça de Vonnegut: Matadouro cinco faz tudo, exceto exaltar a guerra. Billy Pilgrim, seu protagonista, é uma das figuras mais risíveis que você já viu segurando um rifle, uma brincadeira com o perfil real dos combatentes. Além de oftomologista e ex preso de guerra, ele é também um viajante do tempo.
Sim, viajante do tempo. Depois de ser seqüestrado por alienígenas, Billy adquire essa estimada habilidade. Mas não, Matadouro cinco não é ficção científica: a raça extra-terrestre que seqüestra Billy acredita que não há morte – todos vivemos na eternidade, e a viagem do tempo é uma forma de reviver tudo.
Eis o recurso que torna Matadouro cinco brilhante: a viagem no tempo. É impressionantemente mais verossímil que flashbacks (quem se lembra de todos os detalhes de algo que aconteceu há muito tempo, mesmo que esse algo tenha sido importante?), e com isso Kurt Vonnegut costura uma crítica aos seus compatriotas, um manifesto anti-guerra e a história de vida do patético Billy.
Para um livro nesse estilo, é o melhor tipo de personagem que poderia haver – mostra que os horrores não acontecem só com os super-homens/mulheres que seguramente podem agüentar e liderar o caminho para fora da escuridão, e sim com qualquer um. Literalmente. É a mesma coisa que me atraiu no filme Melancolia: é impressionante a tendência de escritores e roteiristas de só retratar os fortes e valentes, como se o fim do mundo, guerra ou situações extremas só ocorressem com eles. Sim, quero a coragem e o altruísmo, mas também a covardia, o egoísmo e a sorte. A arte é humana, e as três últimas características também.
Não posso também deixar de falar de “so it goes” ou “e assim continua”, a frase repetida 127 vezes no livro. Vonnegut narra coisas terríveis e elas são invariavelmente seguidas dessa frase, para sinalizar o quanto nossas catástrofes (pessoais e coletivas) são pequenas para a imensidão do universo ou até mesmo a curta história da humanidade. Como diria Tyler Durden, você não é um floco de neve especial.
O título alternativo para Matadouro cinco é A cruzada das crianças, fazendo alusão ao mito de que crianças teriam lutado uma das guerras entre católicos e mulçumanos pela terra santa graças a inspiração divina. E, se você parar para pensar, não é que o tal título faz sentido?
Publicada originalmente em http://distopicamente.blogspot.com.br