Arsenio Meira 16/12/2013
À Sombra da alegoria dos cadáveres embalsamos
"Matadouro 5" era o abatedouro subterrâneo onde Billy Pilgrim e seus colegas prisioneiros de guerra foram encarcerados em Dresden em meio a um grande bombardeio. É um um romance extremamente romance original e ousado. Dá pra entender as loas tecidas por tantos leitores ao Vonnegut.
Imaginava o livro como um claro libelo anti-guerra, centrado no massacre de Dresden e com toques de ficção científica. O livro é isso mesmo, mas de um modo muito particular e transversal: a guerra aparece como uma piada de mau gosto, patética e trágica, Dresden mal é descrita e apresentada, e a ficção científica limita-se à transgressão do tempo na cabeça do protagonista, que viaja de um momento a outro de sua própria história e existência, vagando entre presente, passado e futuro, por planetas imaginários.
Billy Pilgrim é "jogado" pelo Governo norte-americano nas hostes da II Guerra. Lá perambula pateticamente até que se descola do tempo e passa a freqüentar momentos diferentes de sua vida: a infância e o relacionamento traumático com o pai, o começo da optometria, a ida e os horrores da guerra, o extermínio de Dresden, o casamento satisfeito com sua noiva rica e gorda, o sucesso profissional, o desastre aéreo, a morte da mulher, o seqüestro pelos extraterrestres de Tralfamadore, a vida a dois no zoológico alienígena, a aparente loucura e a morte.
Vonnegut alcançou a proeza de construir essa babel interior por meio de frases simples, como que escritas por uma criança ou adolescente: quase sempre curtas, de uma única oração, sem conjunções, com vocabulário simples e muitas repetições. Soam estranhas na leitura, mas ao cabo tem uma marca própria e apelo, que deriva de sua capacidade de reforçar o caráter patético do protagonista e de sua história. E Vonnegut tem um grande talento para metáforas de humor negro e satírico. A acidez é corrosiva, e espontânea.
A narrativa vaga entre passado, presente e futuro não por um capricho do narrador, mas pela própria vivência do protagonista, que transita psicologicamente entre os diversos momentos de sua vida. Não se trata de fluxos da memória ou de clarividência, mas sim de vivência real de momentos cronologicamente não sucessivos.
As repetições grudam em nosso juízo, mas não retiram o caráter eminentemente corrosivo da obra; fica-se com a impressão que Vonnegut quis incomodar, não deixar água inerte, sem perder de vista a sátira, lançando-a como um explosivo atômico no absurdo que é toda e qualquer guerra.