Karamaru 01/02/2021
MULHER DE FIBRA
“Memorial de Maria Moura” trata-se do último romance escrito por Rachel de Queiroz. Em 1994, foi adaptado para a televisão, no formato de minissérie, obtendo sucesso de audiência. Coube à atriz Glória Pires interpretar Maria Moura, em um dos papéis mais icônicos de sua carreira. Provavelmente, muitos devem se lembrar.
Por meio de uma linguagem fluida e de um regionalismo leve, Rachel de Queiroz conduz o leitor à saga dessa mulher: de órfã aliciada a uma mandatária temida no sertão cearense. Nesse longo percurso, muitas personagens cruzam o caminho da “Dona Moura”. Algumas figuras bem interessantes, como Duarte e Libânia, ambos negros forros, que têm participação decisiva na vida da protagonista.
Os fatos do livro são narrados por diversas personagens, entre as quais se destacam: Maria Moura, Beato Romano e Marialva. Mas não se enganem com o título: apesar de predominarem memórias sobre a “heroína”, existem tramas paralelas – que necessariamente não se conectam à trama central – ocupando uma boa quantidade de páginas.
Um dos grandes méritos dessa narrativa é o oportuno painel histórico do Brasil imperial oferecido ao leitor, especialmente no que diz respeito aos escravos “alforriados”: há cenas aterrorizantes sobre as condições de penúria a que eles ainda eram submetidos.
Em contrapartida (infelizmente), a nosso ver, erros crassos permeiam a obra, e a seguir comentamos alguns deles.
O primeiro diz respeito à construção das personagens: com exceção do Beato Romano, todas as demais (principais) ou são rasas ou controversas. Vez por outra, fomos “assaltados” por algum tipo de atitude incoerente delas, inclusive de Maria Moura!
Além disso, algumas personagens simplesmente desapareceram! E as pistas e os prognósticos iniciais levaram-nos a crer que sua participação seria cabal para o desenrolar dos fatos. Inclusive, isso repercute em outro grave entrave: não há um antagonismo suficiente aqui – a protagonista obtinha o que desejara como num passe de mágica.
Por falar nisso... Quantas coincidências! Muitas, inúmeras. Registramos uma delas: a certa altura, Maria Moura demonstrou preocupação com o fato de os seus jagunços estarem necessitados de sexo. Simultaneamente, numa cena quase idílica, surgiram, a poucos metros de onde o grupo se encontrava, índias esbeltas colhendo frutos... Adivinhem o resto da história.
Para se ter uma ideia dos disparates, o livro é narrado, de forma intercalada, por diferentes vozes; nas últimas cento e poucas páginas da narrativa, entretanto, há uma sequência de capítulos narrados por Maria Moura de forma praticamente açambarcadora.
Por tais razões, admitimos que “Memorial de Maria Moura” é um projeto audacioso, cuja força talvez resida mais no imaginário que se criou em relação a essa narrativa ao longo das duas últimas décadas. Mas, lamentavelmente, as variadas inconsistências esparsas ao longo do texto fizeram com que ele se tornasse, para nós, uma obra olvidável.
Leitura e microrresenha feitas em parceria com Carlos (IG: @o_alfarrabista).