Gabriel Rocha 29/11/2022
Ecos do Espelho
"Existem povoados que têm sabor de infortúnio" (Rulfo, 2020, p. 94), alega Bartolomé, pai de Susana San Juan, a perene e desvanecida amada de Pedro Páramo. Quando Pedro cobiça incisivo a filha do mineiro, exprime que ela teria "a obrigação de ficar orfã”, pois eles, os dominadores, têm “a obrigação de amparar alguém" (Rulfo, 2020, p. 97). A lógica paternalista que acompanha a expropriação persegue todo o texto e se transfere ao povoado pertencente a ele, seu amor e seu dono, o Pedro Páramo. Tudo pertence a Pedro Páramo e todos são seus filhos, filhos de um mesmo infortúnio.
Carlos Fuentes situa a condição inexorável que assola o povo latinoamericano sobrepondo-lhe o labirinto: “a lei se acata ou se cumpre”. E a lei é a figura dos mandos, seu desenho e semelhança, do homem branco dominador, à descrição de Pedro Páramo. E nesse domínio, “a burocracia é também uma arma” (Fuentes, 1992) e está a serviço dos que possuem as instituições, as leis e a igreja. É o que Pedro faz, com suas estripulias extravagantes, mesmo que sem traços de nobreza. Ele domina os arredores pela determinação, faz cumprir e redefine as fronteiras, possuindo tudo, inclusive as pessoas.
Na metáfora do espelho, Comala é um eco, como retratada na nova capa do livro. Um eco da imagem de uma cidade paupérrima, destruída pela proximidade com o latifúndio de Media Luna, que lhe suga tudo, até a morte. Comala é um vácuo resignado de ecos, cidade que reverbera os lamentos dos mortos que cumprem o destino repercutido entre gerações, as estirpes. E para dar cabo da constituição atmosférica desse cenário, a narrativa se estrutura em uma imprecisão cíclica e, da mesma forma, impermanente.
'Pedro Páramo' é um livro de sobreposições. Sobreposições cíclicas temporais e discursivas. As vozes mesclam-se, polifônicas, ora em primeira, ora em terceira pessoa, trafegando sem orientação assertiva de tempo e espaço, tecendo uma narrativa retalhada em fragmentos dispersos e interrompidos. Histórias de sonhos, lamentos, lembranças, digressões fantásticas vão se somando reticentes, sem se concluir. Os mortos narram suas vidas à sua maneira, fora de qualquer redução de uma linha temporal clara, nem de uma lógica aparente. Essa descontinuidade é quem suspende a interrupção; isto é, tudo se dá ao mesmo tempo, pois tudo se trata de uma mesma história de desgraças. O que Pedro Páramo denota é que as sobreposições não são excludentes; pelo contrário, as forças antagônicas tendem a criar uma realidade mesclada, harmônica ou não. Relata-se que 4 anos depois da queda de Tenochtitlan, a capital do Império Azteca, mais de 4 milhões de almas haviam sido batizadas pela Igreja, em um processo de conversão civilizatória arrebatadoramente conveniente, intumescendo a força modeladora da ideologia dominante. Mas nem mesmo essa apoteose da dominação pôde extirpar as forças culturais aglutinadas naquele povo: permaneceram as tradições, crenças e louvores que se misturaram à nova fé e devoção. A cultura de respeito e atenção aos mortos, no México, resiste desde a civilização Azteca; e no que o sincretismo triunfou, cumpre-se o retorno pelo qual os conquistadores foram conquistados.
No mistério da morte tão viva, o México acolhe prontamente o conto de um Deus que se sacrificou, e então todos os cristos mexicanos estão mortos ou pelo menos agonizam. E nessa terra de mortos-vivos, um senhor como Pedro Páramo sente-se seguro para afirmar que os desterrados não têm o direito a se manifestar, já que “essa gente não existe”. E quando o fazem, e se rebelam, podem facilmente ser cooptados pelo poder de suas posses e de sua generosidade: é o retrato feito na menção explícita à Revolução Mexicana, onde os revolucionários são comprados por Pedro. “Pois que se resignem os outros”, é o que responde de pronto, ainda jovem, Pedro Páramo, à provocação de sua avó aos seus delírios de dominador. É preciso se resignar, mas não ele, que não é de resignações. Os murmúrios são dos outros.
Leitura elementar dos apaixonados por realismo fantástico, porque primordial, vanguarda da vanguarda, a primeira, 'Pedro Páramo' é um assombro mórbido e vivo, sem cinismos.