Jacqueline 14/01/2015
Por que as verdades, é claro, ou não existem ou são muitas. E as evidências ou simplesmente servem aos nossos propósitos ou nos desorientam...
“Esse é o nosso conflito como mamíferos – o que dar aos outros, o que guardar para nós próprios” (fala do narrador enquanto discute os progressos que a cooperação trouxe para o desenvolvimento da espécie – na caça, na evolução da linguagem e tudo que trouxe etc. – e o fato de que o egoísmo também é da natureza humana),
A ciência e o universo acadêmico figuram como pano de fundo da história. Joe Rose, formado em Física, vive uma eterna dúvida entre a carreira acadêmica (ser pesquisador) - da qual foi praticamente deposto em função de um lance de azar (outros pesquisadores patentearam primeiro uma invenção para a qual destinou anos de pesquisa) ou seguir na carreira de sucesso de divulgador da ciência, que embora tenha um baixo capital simbólico, permite um respeitável capital financeiro. Em função da sua profissão, teorias e fatos científicos perpassam a narrativa dos fatos centrais, que se desenrolam a partir de uma tragédia: um acidente com um balão acaba por matar um homem.
Um balão desgovernado com uma criança e seu avô a bordo, chama a atenção de um grupo de pessoas que passa a segui-lo. O Avô consegue descer do balão, mas a criança paralisada permanece. Além do avô, Joe e outros quatro homens tentam segurar a corda do balão para que pudessem resgatar o menino, mas um vento forte faz o balão subir, levando os seis pendurados em suas cordas. Aos poucos, cada um deles larga a corda (por opção ou por não aguentarem não se sabe bem), mas um o faz muito tardiamente, quando o balão já está muito alto e morre com a queda (o menino, depois da rápida subida, realiza os procedimentos corretos de aterrissagem e pousa em segurança). Aí reside o primeiro dilema ético da história: se todos tivessem aguentado firme, o balão não subiria muito e todos teriam sobrevivido, mas, com a perda de peso, o pior acabou acontecendo. Mas como todos poderiam saber desse fato na hora?
Segundo dilema: o homem morto era um médico de quarenta e poucos anos que deixou viúva e dois filhos. Algumas evidências em seu carro levam a crer que ele estava em companhia de uma mulher (amante?) quando avistou o balão. Sua mulher quer (e não quer) saber a verdade e pede a Joe que a descubra: caso seja verdade, que o médico tivesse um caso, o que seria melhor: manter a versão da história vivida intacta, ainda que ela, evidentemente, traga muito sofrimento em função da morte prematura, ou contar o ocorrido à mulher, que poderia assim encontrar algum alento em seu sofrimento ou pelo menos um tempero de raiva?
Mas a história central derivada do acidente é a que se dá entre Joe e Clarissa, sua mulher, acadêmica, professora e crítica literária (que também assiste o acidente com o balão) e Jed, um jovem solitário crente, que fica obcecado por Joe: se crê apaixonado por ele e detentor da missão de fazer com que Joe, com todo o seu pensamento científico, se aproxime de Deus. Jed passa a perseguir Joe, pessoalmente e por cartas, e, de forma doentia, sempre vê nas atitudes de Joe respostas aos seus anseios, independentemente do que ele faça. Aqui outro dilema ético se estabelece: embora totalmente invasiva e transtornante não há nada na conduta de Jed que seja ilegal e que permita a polícia fazer algo: seria o caso de inventar ou provocar uma atitude agressiva para que se possa ter um mote para uma denúncia?
Com a interferência de Jed, o casamento feliz de Joe e Clarissa desanda: de início, ela parece não se importar com a história do suposto inofensivo Jed, mas depois chega a acusar Joe de estar fantasiando, já que não vê Jed nos lugares em que Joe diz que está e acha que a letra das cartas é muito parecida com a letra de Joe. Essa dúvida é cuidadosamente colocada para nós, leitores, e nos acompanha durante alguns capítulos: quem é o doente da história - Joe, Jed, ambos?
A descrição do desgaste da relação entre os dois é feita de forma precisa e podemos assistir como uma paixão acaba, como um casal em perfeita sintonia se desencontra, se distancia e se rivaliza. Que amor não teria fim? Somente o amor doentio teria a sentença de permanência? Uma passagem significativa nesse processo, que também envolve outro dilema ético, é quando Joe, já desorientado, resolve invadir a privacidade de Clarissa e lê suas cartas e suas mensagens: que limite é esse que muitos de nós somos tentados a transpor? Que sentido faz transpô-lo? Que verdade esperamos encontrar: uma qualquer que nos sirva para nossas meias verdade? Como podemos saber se o que o outro nos esconde é o que parece ser?
“Descendemos dos indignados e apaixonados contadores de meias verdades que, a fim de convencer ou outros, ao mesmo tempo convenciam a si próprios. (...) quando não é de nosso interesse, somos incapazes de concordar com o que está diante de nossos olhos. Crer é ver. Por isso há divórcios, disputas de fronteiras e guerras, por isso a estátua da Virgem Maria verte lágrimas de sangue e a de Ganesha bebe leite.”