spoiler visualizarJu 06/08/2020
?A Sangue Frio? e a ética jornalística
?Tudo isso que vocês estão dizendo pode ser muito interessante, mas a verdade é que eu escrevi uma obra prima, e vocês não.?
Puramente modesto, essa foi a frase disparada pelo escritor Truman Capote para dois colegas durante um sarau literário. ?A Sangue Frio?, o livro em que ele se refere como sua obra prima, consagra o estilo literário do jornalismo. Com um caso real e que abalou por anos a cidade de Holcomb, no interior de Kansas (Estados Unidos), Capote resgata e traça logicamente a história de uma tragédia familiar.
O autor norte-americano se interessou por uma nota de jornal, em que explicava brevemente o crime e viveu no vilarejo, que foi cenário da chacina, por mais de um ano, passando seis anos para dar vida ao livro reportagem. Coletando e apurando informações, apenas com sua memória, Truman conta a vida da família Clutter e de seus assassinos.
Brutalmente assassinados com tiros de espingarda calibre 12, as quatro vítimas demonstravam ter uma vida tranquila na cidade. Dentro do possível e esperado, ao longo da leitura, é apresentado os membros da família, relatando a vida de cada um, sempre relembrando o futuro que lhes aguardava.
O pai, Herbert Clutter, proprietário da fazenda River Valley, era respeitado, correto e religioso, mas tinha um único problema, a saúde de Bonnie Clutter. Sua esposa, com um comportamento que tendia para o diagnóstico de depressão, possuía constantes crises e não escapava dos comentários frequentes do povoado de Holcomb. O filho caçula, Kenyon, era tímido e quieto, ao contrário de sua irmã Nancy, que sempre manteve o título de queridinha da pequena cidade.
Enquanto a rotina dos Clutter é descrita, pode-se perceber uma família sólida, comum e estável. Com os relatos da vizinhança, o livro se recheia de observações muito bem pontuadas, elevando a narração dos fatos a algo bem próximo ao leitor.
Do outro lado da história, com uma narrativa lenta e explicativa, o escritor insere a trajetória da dupla Perry Smith e Richard Hickock (apelidado de Dick), os assassinos da família. Introduzindo a vida dos dois homens, é exposto uma cumplicidade superficial e barata, os criminosos se uniram após se conhecerem na Penitenciária Estadual de Kansas e projetaram a vontade de encarar uma melhoria de vida rápida e fácil a um plano cheio de possíveis erros, que resultou na famosa chacina de 1959. Com o golpe ?perfeito? armado pelo relato de outro companheiro de cela que conhecia a família Clutter, eles tiveram a falsa garantia que iriam assaltar uma casa, quase, milionária.
?Existe uma raça de homens que não se adapta,
Uma raça incapaz de sossegar;
Por isso partem os corações de amigos e parentes;
E andam pelo mundo afora a deus-dará.?
O autor desenvolve o caminho percorrido pelos dois na viagem que durou dias, para roubarem uma família que nunca haviam visto pessoalmente, acreditando fielmente em um cofre ilusório na casa. Seus passados, suas histórias, suas famílias e seus pensamentos são escritos como uma verdadeira tradução da vida dos rapazes, criando um cenário favorável para uma empatia surpreendente e desagradável.
A aproximação e amizade de Truman Capote com os dois criminosos, coloca em prova a veracidade parcial do livro, animando boatos de um interesse romântico de Capote com um dos assassinos, Perry. Também existe os questionamentos que rondam alguns diálogos do livro, algumas pessoas acreditam na possibilidade de serem inventados pelo jornalista. Ainda assim, são dúvidas pertinentes e necessárias em qualquer ambiente com fatos de interesse público.
Ao tempo em que as pessoas da história se juntam no cenário do crime, a cena é narrada basicamente pela fala de Perry e Richard, às vezes compartilhada com o próprio autor ou com a polícia. Os trechos são pesados, crus e transparentes, revelando uma face extremamente despreocupada e apática de Dick, enquanto mostra um lado mais racional e humano de Perry.
?Sabe o que eu acho??, perguntou Perry. ?Acho que a gente deve ter algum problema. Para ter feito o que a gente fez.?
?E a gente fez o quê??
?Lá?. ?Uma pessoa que faz uma coisa daquelas só pode ter algum problema?, disse Perry.
?Me deixe de fora dessa, meu querido?, disse Dick. ?Eu sou normal?. E Dick falava sério. Achava-se uma pessoa equilibrada, tão saudável como qualquer outra ? talvez um pouco mais esperto que a média, e só.?
Por linhas tortas e preciso dizer que um pouco por obra do acaso, os dois homens são encontrados e a única solução possível, aos olhos do vilarejo e da polícia, era o corredor da morte para os criminosos que tiraram a vida de uma família tão exemplar e honesta. Quarenta e cinco ou cinquenta dólares foi o que Perry e Richard conseguiram levar após o latrocínio, indignados com a quantia e com o plano falho, ainda acreditavam que nunca iam ser encontrados.
O autor conclui majestosamente o livro, decorrendo de uma escrita com diálogos essenciais e fortes para o fechamento da história, fazendo a literatura se encaixar expressivamente bem no jornalismo. Truman Capote, sem nenhum exagero, escreveu um marco clássico sobre a violência na América.
Quando falamos de ?A Sangue Frio?, é preciso ter em mente que a obra não foi totalmente aceita por muitos críticos. Com a aspiração de querer escrever uma reportagem com vida e cheia de detalhes, o norte-americano ultrapassou algumas das barreiras fundamentais da ética jornalística e foi questionado sobre sua forma de contar a tragédia que ofuscou a cidade pacata do Kansas.
Há alguns que o defendem, porque pela lógica da ética de convicção, o autor teria seguido, mesmo que desastrosamente, suas intuições. A descrição de Perry como um rapaz que merecia mais afeição que Richard, fez com que muitos suspeitassem dos encontros que Truman tinha com os assassinos e qual seria o nível de seu relacionamento com eles. A infância do autor, também contribuiu para esse pensamento. Com relatos de pessoas conhecidas pelo jornalista, ele sempre foi visto como um garoto difícil de lidar e interligavam essa informação com a aparente afeição que o escritor tinha com Smith, já que os problemas psicológicos e familiares do criminoso também são narrados.
Apesar das dúvidas que já não podem ser sanadas, a dedicação do escritor de entregar uma reportagem verídica e que expõe os fatos jornalísticos de maneira literal, é invejável. Conhecido como pioneiro do gênero de jornalismo literário, o autor nos entrega uma história atemporal, que ainda aflora centenas de perguntas sem respostas.