adrianlendo 06/01/2021gatilhos: homofobia, machismo
Arandir é um homem casado que beijou a boca de outro homem que acaba de ser atropelado, realizando o último desejo dele, mas um jornalista vê a cena e decide tirar proveito dela causando um grande escândalo na sociedade carioca.
Considero incrível o modo como essa peça, escrita em 1961, ainda possui assuntos tão atuais. O Beijo No Asfalto começa abordando a corrupção e o abuso policial fazendo um importante alerta sobre isso com os personagens mais podres possíveis, logo em seguida fala sobre fake news antes mesmo dela ter esse nome. É uma peça que constrói a cada momento uma trama que só se faz a partir do que a manipulação da mídia faz com a população, isso sem época de disseminação em whatsapp ou robôs no twitter, e faz isso com maestria, com uma matéria, uma cena tirada de contexto, nascia a cultura do cancelamento.
Por se passar ainda nos anos 60 vemos também o choque que um beijo entre dois homens causa em uma população inteira, tudo somado a uma matéria falaciosa no jornal. Um homem morre atropelado por uma lotação que não parou no sinal que já ficava vermelho, mas o foco vai para dois homens se beijando, o escândalo deixa de ser o crime e passa a ser o tabu, novamente de mantendo atual mesmo que hoje em dia não seja tão forte quanto antes.
O Beijo No Asfalto constrói uma tragédia que supera expectativas, é uma peça que toca nas feridas de uma sociedade corrupta e facilmente manipulável. Seus personagens são de camadas incríveis e sua escrita supera o esperado de um roteiro, mesmo que a história acabe pecando no terceiro ato.
Na minha opinião, o último ato, que encaminha para a finalização da tragédia, é desconfortável no pior sentido da palavra. Uma personagem acaba sendo levemente descaracterizada para levar o leitor a criar outros pensamentos sobre o rumo que a história levaria e até mesmo afirmar a sexualidade do protagonista (o que não tinha necessidade alguma) e também leva para uma conclusão que pode até ser compreensível mas com declarações que não fazem sentido com tudo que trouxe a tragédia até aqui, além de algumas cenas desnecessárias.
Encerro dizendo que O Beijo No Asfalto não é uma história representativa, como muitos acham. É sim uma peça que fala muito sobre o que é tabu na sociedade, mas de forma alguma aborda o tema sexualidade de modo que poderia se chegar a dizer que tem alguma representatividade. O foco dela é escancarar a manipulação midiática e a corrupção policial e nesses quesitos ela funciona extremamente bem.