Lucas 26/09/2017
Dostoiévski em seus melhores (e últimos) dias: a tênue linha entre razão e loucura
"O romance mais grandioso jamais escrito". Simples e direto, este é o conceito que Sigmund Freud (1856-1939), o criador da psicanálise, tinha a respeito do último trabalho da vida de outro gênio, o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Os Irmãos Karamázov, rotulado com esse tipo de descrição advinda do maior entendedor de psicologia em todos os tempos, adquire assim, antes da leitura, um peso de "responsabilidade" bastante elevado, já que as suas influências são variadas em muitos campos da ciência desde o seu lançamento em 1881. Além do já citado Freud e sua psicologia, Nietzsche (1844-1900) e Sartre (1905-1980), grandes filósofos dos séculos XIX e XX, também sofreram grande influência da obra, especialmente no que tange ao existencialismo, corrente que prega o ato de existir e da experiência de viver como os maiores moldadores do ser humano em todos os seus aspectos.
Todas estas influências se explicam pelo estilo narrativo do autor. Se em Crime e Castigo, obra-prima de Dostoiévski, já se vislumbram características únicas, elas se repetem e se expandem n'Os Irmãos Karamázov, o que reforça a tese de que não há, nem antes nem depois, escritor tão especial, com um estilo tão inconfundível. Fiódor, de uma vida agitada e sofrida, é (no presente, porque ele é eterno) o melhor no que diz respeito a descrever situações extremas, especialmente as permeadas com drama. Não é só o niilismo, que tanto o simboliza, mas é a capacidade de narrar a profunda pobreza, o desespero, a desesperança, a fé, as crenças de cada indivíduo, as relações familiares, o amor e todos os seus tipos ou o povo da Rússia czarista do século XIX. Porque esse elemento (o povo, humilde) sempre foi a grande fonte de inspiração para Dostoiévski: era um escritor do povo e para o povo. Em Os Irmãos Karamázov, o que se tem é este quadro complexo e encantador, onde se sobressaem todas essas características que adjetivam toda a carreira do autor. Para ele, mais indispensável que o atributo físico de um personagem é a sua aparência interior, o seu psicológico, a sua consciência quando se está diante de situações extremas e o impacto que o contexto social atua para moldar esse "Eu interior" e o caráter do indivíduo; na sua pena de escritor, a alma fala e é ouvida. Dostoiévski não deixa de ser, por esse lado, um grande símbolo do naturalismo literário (que retrata a influência do meio sobre o ser humano), surgido na literatura do século XIX, especialmente com o francês Émile Zola (1840-1902). Naturalismo, realismo, existencialismo, direito... Praticamente todas as ciências humanas e filosofias podem ser associadas às obras de Dostoiévski em um ou outro ponto. Toda essa influência, no entanto, nasce do imenso conhecimento psicológico que o autor tinha, comprovado pela construção de personagens complexos, ambíguos, astutos e eternos, seja pelos ensinamentos que perpetuaram ou pelas reflexões que criaram.
Deixando de lado o criador e mencionando a sua criação, Os Irmãos Karamázov narra a saga de uma família esfacelada, principalmente pela ganância, pela promiscuidade e pelo grotesco do pai, Fiódor Pavlóvitch Karamázov. Viúvo de dois casamentos, ele trás para si muito dos aspectos repugnantes que Dostoiévski quis descarregar na história. Do primeiro casamento, ele teve um filho, Dmítri Fiódorovitch, personagem que mais se assemelha ao pai e o que mais causa os conflitos familiares que a narrativa tanto destaca. Na segunda "união", o velho Karamázov teve outros dois filhos: Ivan (intelectual desiludido, mas criador das mais importantes teorias que o livro desenvolve) e Alexei (também chamado de Aliocha, simpática figura que frequenta um mosteiro).
Aliocha é, segundo o próprio autor, o "herói da sua história", como ele bem menciona no prefácio. Dostoiévski, inclusive, planejava escrever uma continuação que focasse mais neste personagem, mas a morte o levou primeiro (por epilepsia e outras complicações). O caçula dos Karamázov é, também, o mais "desvirtuado" da família (o leitor perceberá que ser desvirtuado neste caso é uma dádiva). É com ele também que a família vai sendo descrita e nele se percebe uma figura preocupada com a paz e "unidade" familiar. Nas suas interações na sociedade, especialmente nas camadas mais miseráveis da Rússia da época, adquire-se uma nítida impressão do ceticismo dominante, provocado por um contexto social decadente e desigual. Aliocha, no entanto, ensina e presencia em várias ocasiões uma das lições mais válidas dos escritos de Dostoiévski: a regeneração moral pelo sofrimento, pela perda e pela dor. O drama assume nesse viés o papel de uma ponte que liga quem sofre a um estado de maior compreensão de si mesmo, onde o altruísmo vence o egoísmo (como não lembrar de Raskólnikov, protagonista de Crime e Castigo?).
Os laços familiares, tão importantes em qualquer cultura, também servem de esteio à narrativa. Dostoiévski mostra ao leitor a importância que uma estrutura familiar sólida gera ao elemento mais importante de uma relação, os filhos, e a sua definição no caráter deles. O exemplo paterno (principalmente no caso de filhos homens) é o principal farol que guia e constrói a formação do jovem, não sendo o contexto social o único alicerce na concepção de uma pessoa de valor. O incrível é que o autor descreve a importância do pai numa família pela sua ausência, explicada, em parte, pela repugnância que o patriarca dos Karamázov é capaz de causar.
Já Ivan, o primogênito do segundo casamento, é o elemento que Dostoiévski usa para exprimir os pontos filosóficos próprios da obra. O primeiro deles, e que é mencionado em boa parte das sinopses mais detalhadas, corresponde à existência de Deus e a sua relação com o comportamento humano. Segundo Ivan, típico niilista, o amor que existe no mundo só existe a partir da mentalidade que o ser humano acaba adquirindo a respeito de Deus, que "julga" os bons atos que os homens fazem durante a existência e que interfere no destino humano do "pós-morte". Assim, se a figura divina um dia fosse eliminada da crença popular, tudo na Terra seria permitido. Porém, ao discorrer sobre os pontos que fazem do cultivo do amor algo não-natural, Dostoiévski acaba mencionando a essencialidade que esse sentimento possui num mundo pacífico e ideal, melhor ainda que o "presente", que se atrela ao julgamento divino. Ao expor o cenário de uma realidade onde tudo seria permitido, o leitor acaba descobrindo os malefícios que esse panorama teria em comparação com o que se tem no mundo real.
Na sequência, o mesmo Ivan, já com um olhar menos cético, descreve um imaginado encontro entre um inquisidor espanhol da época da Grande Inquisição do país, ocorrida entre os séculos XV e XIX, e Jesus Cristo, que havia voltado à Terra. Num longo capítulo chamado O Grande Inquisidor, Ivan elabora um "julgamento" do filho de Deus, discorrendo sobre, principalmente, o livre-arbítrio e a mistificação do Cristo Crucificado. O desfecho de tal diálogo imaginário é sublime e reforça a crença na figura espiritual do maior Homem que já existiu. No entanto, por se tratar do capítulo mais relevante do livro, dezenas de outras conclusões podem ser geradas, dependendo do leitor.
Estas duas exposições, aliadas a outros aspectos, explicam a forte carga teológica que o autor usou na obra. Uma prova mais visível disso são as dezenas de dezenas de citações e menções à Bíblia, principalmente relacionadas aos Evangelhos e ao Antigo Testamento. Esta prática, aliás, encontra validade especial no que tange ao círculo social dos personagens, em geral mais pobre e miserável; por questões históricas universais, classes sociais mais inferiores tem um apego maior (mas por vezes superficial) à figuras divinas, o que reforça também a prosa de Dostoiévski, sempre voltada ao povo humilde da Rússia (como não lembrar, dessa vez, da prostituta Sônia, de Crime e Castigo?). Um outro artifício fictício que fortalece ainda mais essa veia religiosa que Os Irmãos Karamázov tão bem expõe se refere à descrição da vida do Monge Zózimo, espécie de tutor de Aliocha. O livro VI (a divisão da obra é por "livros"), que trata desse detalhamento, é uma das coisas mais encantadoras que um literário já escreveu. A busca da fé pela humildade, a real fraternidade, o consumismo exagerado e uma infinidade de outros temas dão a impressão de que se está diante de uma crônica que avalia os rumos da sociedade atual. É importante sublinhar ao futuro leitor quando ele estiver à beira desse momento da narrativa: "apenas" o livro VI vale muito mais que muitos outros quaisquer trabalhos narrativos.
O medo, a loucura e a obsessão doentia por algo, associados à honra, são relatados com profunda maestria, causando muita agonia ao leitor, já que acabam desembocando em um crime bárbaro. Nada mais poderia simbolizar melhor o estilo do autor, mas, mesmo em quem já teve certo contato com outras obras dele, haverá surpresa e o leitor ficará interiormente tocado pelos detalhes narrativos de Dostoiévski nestes momentos: a crueza e a virilidade dos atos em momentos de desespero é fielmente desenhada em um contexto de suspense e mistério. Até mesmo quando o autor quis "enojar", trazer revolta ao leitor, ele o fez com um realismo quase tangível, que, antes de asco, causa espanto.
De fato, como mencionado na sinopse da edição da Martin Claret (que apesar de não ser traduzida direto do russo, faz a narrativa fluir muito bem), Os Irmãos Karamázov resume bem toda a genialidade do autor: reflexões capazes de gerar profundos exames de consciência, a habilidade de construir uma narrativa baseada em desespero e depressão, o olhar psicológico para o todo e o que o compõe, a fé como elemento impulsionador da redenção moral, o "ser" vindo antes do "ter", o impacto que uma estrutura familiar deficiente ou inexistente causa na formação do indivíduo... São dezenas as contribuições morais que só Dostoiévski é capaz de fazer, e que tão bem são espelhadas em seu derradeiro trabalho. Lê-lo é edificar-se a partir do pensamento: é assistir a uma luta entre o homem e o seu mundo, onde nem sempre o final é feliz.