Thiago Ernesto 09/08/2015
La Vida Es Sueño
Cada livro é uma peregrinação. O que define o tamanho da caminhada não é sua espessura, mas a grandeza do que suas páginas carregam. Porém, quando é grande a mensagem que essa mesma obra encerra e muitas são as páginas que abriga, o caminho se torna mais longo e a chegada muito mais gratificante. Assim é com Dom Quixote de Cervantes.
“Os homens são anjos nascidos sem asas, o que há de mais bonito, nascer sem asas e fazê-las crescer”. Acredito que essa frase, do grande mestre Saramago, ajuda a compreender o sentido da obra do também ibérico Miguel de Cervantes. Calderón de La Barca já pontuou: la vida es sueño y los sueños, sueños son. Dom Quixote, sobretudo, é sobre os sonhos, sobre a fantasia, sobre a beleza. A personagem principal do épico vive em um mundo próprio que, a princípio, parece fazer sentido somente para si mas que, nas últimas páginas, dá sinais de que é muito mais universal que aparentava.
Não falta quem julgue o fidalgo Dom Quixote de La Mancha louco, desvairado. Muito mais seleto é o grupo daqueles capazes de enxergar na figura do cavaleiro alguém com ânsia de ver o mundo de forma muito mais fantástica que o padrão. Quando os olhos humanos passam a ser também olhos literários, poéticos, moinhos de ventos são gigantes, camponesas são princesas, bacias são elmos.
Muito embora Quixote possuísse de fato algum tipo de problema mental, o que o próprio autor não nega, somos levados pelo mesmo a refletir sobre os limites da loucura e da sabedoria. Sancho Pança que, não só para mim mas para muitos, é a personagem de maior graça da obra, embora camponês e analfabeto, protagoniza os momentos de maior lucidez. Seu amo não fica atrás, mesmo tido como doido, Quixote se mostra muito mais sábio do que os que gozam de si.
Finalmente entendo o porquê dessa obra ter influenciado grandes artistas posteriores como Dostoiévski e Suassuna. Facilmente se notam características do Quixote em livros como A Pedra do Reino e O Idiota. A loucura sonhadora de Quaderna e a bondade do príncipe Michkin, motivo de zombaria por parte daqueles à sua volta, muito refletem o Quixote de Cervantes. O mundo está preparado para crucificar aqueles que se dispõe a serem bons.
Como qualquer grande clássico, o final não poderia ser menos emocionante: o fidalgo cai doente em sua casa. O que adoeceu Quixote, me parece, foi a realidade seca, crua, sem fantasia, sem beleza. Quando recupera sua “lucidez”, perde aquilo que lhe tornava D. Quixote, perde o sentido de sua vida. Aqueles que desejam persuadi-lo a desistir da cavalaria, quando se deparam com aquele novo homem, desiludido, tentam, em vão, reanima-lo para mais uma andança. D. Quixote, ou melhor dizendo, Alonso Quixada, morre completamente fora de seu alter ego, no mundo que chamam real. Me parece que aqui está o maior legado da literatura: a vida, vivida como um sonho vale muito mais a pena.