Caroline Gurgel 08/04/2015"Mas a ilusão, quando se desfaz, dói no coração de quem sonhou, sonhou demais..."Sempre que vou ler um clássico, gosto de fazer uma rápida pesquisa sobre o contexto em que ele foi escrito, pois, na maioria das vezes, sua importância se deve à originalidade apresentada na época, seja em relação ao tema ou à escrita. Julgá-lo como se tivesse sido escrito nos dias de hoje é injusto e lê-lo fora de contexto faz com que não aproveitemos bem tudo o que ele tem a nos oferecer.
Ao iniciar a dita pesquisa, uma decepção: meu francês é perto de zero! Gustave Flaubert, almejando a perfeição, dedicou cinco anos de sua vida para escrever Madame Bovary. Escrevia e reescrevia as frases até que soassem como desejava, com uma excessiva preocupação com a forma e a cadência das palavras. Flaubert mudou a forma como se escrevia romances, com uma estrutura de texto mais concisa e objetiva, sendo considerado um dos precursores da narrativa moderna. O resultado disso é um livro apontado como um dos romances mais bem escritos que já se viu, mas, infelizmente, muito dessa perfeição se perde com a tradução, por melhor que ela seja.
Madame Bovary foi lançado em 1857 e chocou a sociedade da época, levando Flaubert, inclusive, a ser processado - e absolvido - por atentar contra a moral e os bons costumes ao trazer uma personagem adúltera e fortes críticas à burguesia e ao clero. Flaubert vai de encontro ao estilo literário da época, o romantismo, e no lugar de heróis e heroínas, traz uma visão realística, sem distorções, da sociedade e seus membros. Com uma prosa irretocável, uma ironia incrivelmente bem mensurada e um texto objetivo, Flaubert dá início ao Realismo.
Ele abre sua história mostrando um pouco da infância de Charles Bovary, como ele foi ridicularizado na escola e como, posteriormente, se formou - a duras penas - em medicina. Quando vai à casa do Sr. Rouault para tratá-lo de uma enfermidade, Charles conhece e se interessa por Emma, sua filha, a quem pede em casamento ao ficar viúvo.
Emma fora criada em um convento, recebera uma boa educação e era tão sonhadora quanto as mocinhas dos livros que lia. Era ambiciosa, queria ter o glamour parisiense, sonhava em viver um amor como dos romances e ser feliz. Ela viu no casamento com Charles essa oportunidade. No entanto, vivendo em uma pequena cidade francesa, ela, agora madame Bovary, se vê entediada com um Charles sem ambição alguma. Após um grande baile no qual foi convidada, Emma entra em uma crise existencial, achando que não pode ser feliz naquela pacata cidade. Charles resolve, então, se mudar.
Os novos ares a iludem por pouco tempo, e logo ela se entedia de novo. Até que se encanta por um homem dessa nova cidade e passa a ver nele sua possível felicidade. É sempre assim, se apaixona perdidamente por um, se decepciona, entra em depressão, se apaixona por outro, se decepciona, entra em depressão… A felicidade nunca está nela, nunca pode ser encontrada na vida em que vive, sempre está em algo que ela projeta e deseja.
Paro por aqui para não dar spoilers do que acontece na história, mas é sabido que Emma teve amantes com quem trocou inúmeras cartas apaixonadas. Sem eles, ela não via a possibilidade de ser feliz.
"Ela repetia-se: - 'Eu tenho um amante! Um amante!' -, deleitando-se com esta ideia como se uma nova puberdade lhe tivesse retornado."
A felicidade é um dos temas tratados no livro. O que faz alguém feliz? Por que, até hoje, muitas pessoas vêem sua felicidade em algo que elas não tem ou não conseguem? Emma Bovary passa a achar que sua felicidade depende daquele amante, que tudo o que ela tem é medíocre, que as pessoas a seu redor são inferiores, que ela foi feita para ser mais do que aquilo. Passa a gastar fortunas e se endividar só para ter o que quer e presentear o amante. Eis onde entra a crítica de Flaubert ao consumismo - e sua errônea conexão com a felicidade - e à futilidade da burguesia, ainda tão atuais, mesmo mais de um século e meio depois.
Aliás, guardadas as devidas diferenças de épocas, tudo é muito atemporal nesse romance. Ao analisarmos os personagens principais, vemos que ainda temos deles aos montes. Um Charles que tenta agradar a esposa, mas não vê que não a faz feliz - e é o último a saber disso. Uma Emma dissimulada, infeliz, ambiciosa, consumista, mas linda, bem vestida e refinada. Uma mulher que teme trair, mas que quando o faz termina se acostumando às suas mentiras.
"Tudo mentia! Cada sorriso escondia um bocejo de tédio, cada alegria uma maldição, todo prazer seu desgosto, e os melhores beijos só deixavam no lábio um desejo irrealizável de um prazer maior."
Flaubert nos mostra que, com o hábito, Emma se tornava insaciável, havia sempre a necessidade de mais, e com isso, alfineta o romantismo e todo seu idealismo. Demonstra que não existem heroínas tais quais nos livros e que os homens nem sempre estão dispostos a toda aquela paixão inebriante.
Emma é tão complexa e bem construída que podemos passar horas pensando em suas atitudes, em seus porquês, em sua personalidade. Isso me fez querer aumentar minha nota para o livro, pois só um gênio para criar uma personagem tão viva e tão real, tão cheia de faces, fingida, cínica, mas sem ser óbvia ou caricaturada. O mais interessante é que o autor consegue nos deixar livres para odiá-la ou não, ele consegue não emitir sua opinião. Ela é o que é, nada mais.
Quando li que o livro era o marco inicial do Realismo, me perguntei porque não o era A Mulher de Trinta Anos, de Balzac, já que fora escrito antes. Os dois livros criticam a sociedade burguesa e trazem personagens infelizes, que traem seus maridos. Dizem, inclusive, que Flaubert se inspirou no livro de Balzac, então por que Madame Bovary é tratado como início do movimento? Tendo lido os dois, só posso opinar que a diferença esteja, sim, na escrita e na narrativa. Enquanto Balzac ainda parece mais classicista, a leitura de Madame Bovary é incrivelmente fácil, o autor nos conta sua história sem que sintamos o passar das páginas, é tudo muito fluido. Não há tédio, não há excessos, não há detalhes desnecessários, mesmo sendo cheio de descrições. O livro conquista o leitor do começo ao fim, sem altos e baixos. (Gosto muito dos dois romances, mas a personagem Julia, de Balzac, é digna de compaixão, enquanto Emma é mais irritante - talvez isso seja mais um traço do realismo flaubertiano)
Quanto as notas de rodapé, tenho uma ressalva: algumas delas são bem toscas! Eu, acredito que como todo leitor, adoro notas de rodapé, mas é um pouco estranho quando a maioria das notas que você lê traz referências a livros posteriores ao que você está lendo, como, por exemplo, "essa passagem pode lembrar-nos Hemingway". hum?! Bem, até entendo a intenção de criar um panorama de autores influenciados por Flaubert, mas isso tira um pouco do nexo das notas, não? Senti muita falta de notas que mostrassem mais as escolhas do tradutor em relação às palavras e seus porquês.
Comecei a resenha pretendendo pontuar o livro com 4 estrelas, mas termino classificando-o como um 5 estrelas, uma vez que o enredo não me sai da cabeça e seus personagens tem ainda tanto para serem debatidos e mastigados. Poderia ainda escrever parágrafos e mais parágrafos analisando o comportamento de Emma, personagem intrigante que vale a pena ser conhecida. Uma leitura para quem gosta de literatura e seus movimentos, ou para quem deseja aprender mais um pouco sobre eles e sobre a sociedade burguesa da França do século XIX.
Recomendadíssimo - mas, apenas lembrando, deve ser lido muito bem contextualizado.
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