Abduzindolivros 09/06/2024
Todos somos sacos de ossos, mas tem uns que, olha, são uns sacos de bosta
Michael Noonan é um escritor famoso o suficiente para estar sempre na lista dos 15 mais vendidos. Um dia, sua esposa Jo falece subitamente, e Mike entra em um luto de quatro anos que o colocam em um bloqueio criativo. Tentando recuperar sua capacidade de escrever, ele decide passar um período em sua casa de férias, chamada de Sara Laughs, e lá se depara com alguns fantasmas tentando encobrir segredos tanto de Jo quanto da comunidade local.
O começo do livro é meio lento e cheio de informações que não parecem ter conexão. Começa com a morte súbita de Jo, a descoberta de que ela estava grávida, passa pelo hiato de 4 anos sem que Mike conseguisse escrever uma palavra sequer, seu retorno para a casa de férias dos dois, intercalado com lembranças de seu casamento e a descoberta de que Jo morreu escondendo alguns segredos. Junto com isso, Mike se envolve com Mattie Devore, a nora de um magnata da informática que está tentando obter a custódia da neta, Kyra Devore. O velho Max Devore é o puro suco da crueldade, mesmo já estando com o pé na cova, e ameaça Mike para não se meter na treta dele com a nora, mas aí é que o escritor teima e decide ajudar a moça.
E até mais ou menos metade do livro, parece que nada tem a ver com nada, sabe? O Mike paga um advogado para defender a moça e impedir que o velho nojento consiga a guarda de Kyra, tenta lidar com o bloqueio criativo, começa a ter uns sonhos estranhos, a ouvir fantasmas em sua casa, a ficar jururu porque Jo, antes de morrer, teve umas atitudes estranhas que escondeu dele... Além disso, a comunidade na TR-90 está sob o jugo do milionário Devore, unidos contra Mattie e protegendo-se por alguma coisa que não sabemos o que é. Ah, e ainda tem uma trama no passado envolvendo um grupo musical, Sara Tidwell e os Red-tops.
É um quebra-cabeças muito confuso, com peças que não parecem nem fazer parte da mesma paisagem... Só que eu fiquei muito curiosa e quis persistir para ver no que ia dar. E fui recompensada. A partir do capítulo 17, a coisa foi escalonando para níveis de bizarrice humana mesclados com terror sobrenatural que me deixaram boquiaberta, e cada vez mais envolvida com a trama. Aos poucos, mas de forma consistente, King foi revelando os mistérios e o cenário foi se formando na minha mente.
Só que eu não estava preparada para o que viria. Em meio a uma cena de violência inesperada seguida de uma tempestade terrível, o King enfim dá as explicações e conecta as partes; e a coisa é ainda mais terrível do que eu tinha tentado inferir. Meu pai amado, que reviravolta, que enredo! Quando entendi o porquê do título, Saco de Ossos, já fiquei de queixo caído... e só quem leu sabe o impacto de entender por que a casa de férias de Mike se chama Sara Laughs, ?Sara ri?. Não posso comentar nada sobre esses pontos para não estragar a experiência de leitura de quem ainda não leu (por favor, leiam), apenas direi que a coisa é de embrulhar o estômago.
Vou falar para vocês, apesar de ficar aterrorizada e não concordar com os atos fantasmagóricos de Sara Tidwell, passo muito pano para ela. E não quero amizade com quem não passa...
?Saco de Ossos? é uma história impactante de uma vingança sobrenatural, só que tem um pé muito importante na realidade discutindo um tema muito importante: racismo. No fim das contas, a história é sobre isso, sobre a falta de limites da crueldade humana para defender seus ideais distorcidos. O efeito disso reverbera nas próximas gerações. O Stephen King foi muito certeiro ao demonstrar que sim, o racismo continua beneficiando a comunidade branca ao longo das gerações, ao mesmo tempo que gera um impacto muito negativo em toda a sociedade; mas, mesmo assim, tem muita gente branca que se recusa a enxergar isso, apegados aos seus valores torpes que lhes permitem ter um destaque econômico e social, sem se importar com a carga de sofrimento que geram.
A parte sobrenatural é tensa, mas não é mais assustadora do que a capacidade humana de fazer maldade, e continuar praticando atos perversos para garantir o status quo. O homem de carne e ossos é o mal encarnado. O que é um fantasma sedento por vingança perto do que somos capazes de fazer?
Outro ponto que o King traz sobre o título é a citação atribuída a Thomas Hardy, que diz: ?comparado ao mais monótono ser humano andando pela face da Terra e deitando nela sua sombra, o personagem mais brilhantemente desenhado num romance é apenas um saco de ossos?. Por mais que os personagens de King, nessa obra, sejam muito bem-feitos a ponto de parecerem palpáveis, além da discussão levantada e os objetivos com a obra serem atingidos e muito bem amarrados, a realidade é muito mais complexa do que qualquer trama jamais poderá oferecer. O King inseriu esse ponto, penso eu, como uma forma de mostrar que ele sabe que o assunto que abordou e os personagens que criou não são o suficiente para contemplar tudo o que precisa ser dito sobre racismo.
Mesmo assim, ele foi brilhante no que entregou, aqui. ?Saco de Ossos? entretém, faz pensar, aterroriza. Stephen King mostrou o porquê de ser o mestre do suspense e do terror. Entregou tudo. Que livraço!
O começo meio lento pode parecer um ponto negativo, mas o autor amarrou tudo muito bem no final, e toda a aparente lengalenga fará sentido. Vale a pena persistir. É um livro que me derrubou, merece releitura, baita obra. Recomendo fortemente.