gabriel 16/10/2021
Bom livro sobre aristocracia inglesa
Gostei desse livro, terminei ele com um sorriso no rosto, mas foi um pouco diferente do que imaginei. Ele começou muito mais promissor pra mim, aí do meio para o fim foi ficando um pouco entediante, e o final foi encaminhando resoluções um pouco mais convencionais (e previsíveis) do que eu esperava. Mas é um livro muito inteligente, com muitas sutilezas e alguns mistérios, é um livro em que muita coisa acontece debaixo da superfície.
Emma é uma jovem da alta sociedade inglesa, residente de Highbury, localizada no interior daquele país, a algumas dezenas de quilômetros de Londres. Gosto como as distâncias são trabalhadas no livro: logo de cara, a autora localiza cada personagem em distâncias objetivas, como peças em um xadrez, marcando bastante este fato. Isso torna a narrativa clara, bem como as dinâmicas entre os personagens (que são influenciadas por essas distâncias). A geografia, então, é um aspecto muito bem trabalhado na obra.
Gostei de passar esse curto período nessa outra época histórica, num país distante do meu, e numa classe social distante da minha. O preconceito aqui é aberto e tratado sem cerimônias: superioridade e inferioridade social são tratados como naturais e esperados. Hoje acontece a mesma coisa, é claro, mas a roda da história girou e hoje precisamos dissimular. Ainda vivemos numa sociedade estratificada, talvez até mais do que naquela época. Passar da aristocracia para a burguesia é possivelmente um salto, no entanto; de parasita a parasita, vamos avançando. Mas a arte também se faz de injustiças e estas questões não me parecem centrais num primeiro momento.
Adorei o estilo de escrita da Jane Austen. Irônico, afiado, leve, contém um bom ritmo. Os diálogos são antológicos, por baixo deles rola um jogo intenso de dissimulação. Uma cena especialmente com o sr. Knightley me chamou a atenção: nesta cena, a troca de olhares intensas entre os personagens forma uma complicada teia, praticamente um "bangue bangue" social, um olha pro outro e o outro olha pra um, tratada de maneira sóbria e magistral pela autora. É muito legal entrar na mente de cada personagem, principalmente da Emma, e entender todas as suas motivações.
A narradora é onisciente, com uma tendência a gravitar mais em torno de Emma, mas entrando também na mente de outros personagens ocasionalmente. É uma narração em terceira pessoa, mas é uma terceira pessoa cheia de personalidade, no meio da narração existe um clima de comentário e análise psicológica muito bem marcado. E, como ela analisa mais o interior da Emma, soa às vezes quase como um livro em primeira pessoa, pelo ponto de vista desta personagem.
Jane Austen prova que é possível escrever um livro ótimo sem precisar se perder em milhões de descrições que arrastam a leitura. As descrições físicas dos lugares são pontuais e certeiras, e bastante econômicas. O mesmo acontece com as características físicas, que vamos sabendo aos poucos (só soube que Jane Fairfax tinha cabelos negros mais para o final, por exemplo). Não sou contra descrições, que se bem feitas abrilhantam a leitura, mas aqui é uma leitura muito mais fluida e que dispensa o recurso.
Li na tradução de Ivo Barroso (infelizmente falecido neste ano de 2021), e a tradução me pareceu muito boa. Não fiz uma análise detida, mas a escolha vocabular me pareceu condizente a uma obra do século XIX. Não sei como outras traduções mais recentes tratam o assunto, talvez optem por um vocabulário mais atual. Em todo caso, para mim soou muito bem e achei que está muito agradável de ler.
A fraseologia da Jane é algo muito interessante, ela sempre consegue deixar uma cena mais interessante do que ela poderia ser, através da maneira como ela expõe o assunto. Sempre é visto por um ângulo diferente, colocado de uma maneira inteligente e que leva à reflexão. Isso tudo feito mantendo a sobriedade e a elegância, sem se perder em firulas. É uma autora com domínio da arte escrita e que aqui a emprega muito bem.
A história a partir do meio toma um caminho mais convencional, o que fez ele perder um pouco da empolgação. Esperava algo mais bombástico, mesmo assim foi um final redondinho e bem gostoso de ler. É um livro que tem um clima de telenovela, e isso para o bem e para o mal. O retrato é de uma classe social que tem preocupação zero com trabalho, a maior preocupação deles é como marcar um baile, um jantar, ou então pegar morangos em idílicos passeios. Qualquer coisa minimamente produtiva aparece muito tangencialmente.
O ambiente de falsidade e fingimento às vezes é sufocante, às vezes engraçado ou apenas entediante. Há bons elementos de humor e é um livro engraçado. Bons personagens que puxam mais para o humor são o senhor Woodhouse (hipocondríaco) e a Miss Bates (tagarela), gerando boas cenas e contrabalanceando as partes mais reflexivas. O século XIX também é muito interessante e vivo, com suas cartas pra lá e pra cá, carruagens e todo o modo de vida de então.
Emma me pareceu uma pessoa frágil, pobre emocionalmente e que se esconde atrás da sua posição social e do seu cuidado com o pai (que, na verdade, nem precisa de cuidados), como uma desculpa para sua falta de envolvimento. Suas observações e tentativas de manipulação, que no começo parecem bem sagazes, adquirem um tom irônico ao longo da obra.
Os demais personagens também são muito bons, muito realistas e parecem bem verdadeiros. São muitos personagens e a autora conseguiu introduzi-los e desenvolvê-los sem maiores problemas.
Um livro gostoso de ler, muito bem escrito, com muitos detalhes que pedem uma segunda ou terceira leitura, algumas reviravoltas, um pouco tedioso e repetitivo do meio para o final, e o final propriamente bem amarradinho e um pouco mais convencional e açucarado do que eu gostaria. Mesmo assim foi uma excelente leitura, foi minha estreia com a autora e com certeza buscarei outras obras dela.