TrizRoss 05/02/2023
Maestria e literatura
Akutagawa é um dos maiores escritores japoneses e até hoje suas obras são relevantes e causam reflexões importantes sobre a moralidade. Essa edição conta com duas tradutoras incríveis e muito capazes, uma biografia e análise de sua produção artística bem feitas e complementares à leitura dos contos. Cada narrativa traz questões culturais de épocas diferentes do Japão e questões filosóficas interessantes. Vou falar brevemente dos contos incluídos nessa coletânea, começando com trechos da minha review de "Kappa e o Levante Imaginário" (recomendo muitooo também):
"Rashoumon é um de seus contos mais famosos e o que deu início a sua carreira de escritor. Já é perceptível a habilidade de Akutagawa de abordar temas da ética humana. Mesmo sendo uma história curta, ela traz o dilema de moralidade e o ciclo das pessoas cometendo atos imorais contra as outras só pra acabarem sendo as próximas vítimas, além dos pensamentos internos do servo e as contradições morais dele serem muito bem escritas. Essas contradições fazem sentido, mostrando que o personagem muda dependendo de suas emoções e da situação presente, mais realista do que se ele seguisse uma decisão o conto todo e não a mudasse por nada. Mais um conto que promove reflexão e uma análise completa de páginas e páginas.
(...)
No Matagal é outro dos mais famosos, tendo sido adaptado em filme live action (Rashomon, 1950), possui os aspectos de um mistério de assassinato com um foco na construção das personagens. Cada personagem é uma pessoa própria e com características de personalidade que o leitor consegue diferenciar pelos relatos e deve levar em conta ao analisar o que é verdade ou mentira. Cada detalhe que pode se contradizer só adiciona mais dúvidas do que realmente aconteceu, dos maiores como "quem matou?" até aos menores como "quem estava usando tal cor" e deixam ainda mais interessante de tentar desvendar o mistério (mesmo que não tenha como ter uma resposta definitiva). Até a vítima dá seu testemunho mas não tem como confiar 100% nele, até porque ele era uma pessoa diretamente envolvida que ia deixar as emoções e visões pessoais afetarem a sua versão dos fatos e não conclui todos os misterios em relação aos envolvidos. Esse é um conto que a cada lida você repara em algum detalhe diferente que talvez não tivesse reparado antes, merecendo sua fama."
Memorando: Ryosai Ogata introduz um olhar no contato inicial do cristianismo no Japão e o que as pessoas pensavam dessa nova crença. Tem vários pontos de contraste como ciência x religião ou lealdade a fé x lealdade a família. A parte que a menina ressuscita como um milagre foi ainda mais interessante pois parece algo que teria na bíblia, mas ao invés do narrador ficar maravilhado com aquilo e se converter, ele vê como provas de que é magia suspeita e não confiável.
Ogin trata desse tema de primeiro contato religioso de outro jeito, a partir de um narrador que crê nessa fé. Possui a mesma temática da fé x família, com o foco no amor familiar. No final, ao invés de acontecer o esperado deles se manterem na fé e morrerem como mártires, eles acabam na desgraça e parece que morrem mesmo assim, só que sem a fé pra se sustentar. Mais uma vez é interessante ver os termos estrangeiros que eles usam e como as rezas são idênticas às usadas numa missa de domingo, não muda nem uma palavra.
O Mártir é bem diferente do estilo que o Akutagawa normalmente usa, mas parece que isso da uma certa veridicidade a característica de relato histórico (que ele fala que só adaptou o conto de um livro antigo), principalmente a protagonista que se mantém como uma pessoa boa durante toda história, servindo para destacar as imperfeições das outras personagens à sua volta. Enquanto tem um final trágico, ele parece ter um tom um pouco mais esperançoso, mesmo com a tragédia. A revelação final é bem surpreendente e faz com que você pense na história com outros olhos.
Terra Morta possui vários elementos de análise individual das personagens e como a personalidade de cada uma é distinta de acordo com as reações em relação a morte, eu achei que isso é parecido com No Matagal nesse quesito. Os próprios poemas do Basho Matsuo que são relacionados aos acontecimentos ficaram bem colocados, até por conta da temática de natureza e pelo poema inicial ter sido o último que ele produziu. Me pergunto se tem alguma relação/inspiração com a morte de Natsume Soseki, mentor de Akutagawa, que morreu 2 anos antes dele escrever esse conto.
Devoção à literatura popular é um dos que eu mais gosto dessa coletânea. Ele traz muito a questão da arte (seu propósito e definição), produção artística e elementos culturais da época, temática que o próprio Akutagawa costumava a discutir, como em uma série de cartas trocadas com Junichiro Tanizaki (Literário, Literário Demais) e em outro conto que não está presente nessa edição (Inferno). Vários dos pensamentos internos de Bakin, principalmente em relação a escrita, fazem muito sentido e o leitor consegue se identificar com ele. Leva a pensar se o próprio Akutagawa talvez não sentisse algumas dessas coisas quando escrevia, ainda mais na parte de se sentir inferior como autor ou não gostar das próprias obras. Tanto esse quanto Terra Morta são sobre autores que realmente existiram só q um foca no dia da morte (pelos olhares de outros) enquanto o outro foca num dia da vida (pelo olhar do protagonista).
O baile trata sobre o período de inserção do Japão na política global e a difusão de cultura ocidental é bem representada nesse contato de uma moça japonesa com um homem francês nesse baile cheio de gente de várias partes do mundo. No final o moço francês ser o escritor dessa história do ponto de vista dele (e, portanto, o ponto de vista europeu) me deixou curiosa pra ler e ver quais são as diferenças de olhar nesse contato.
Passagens do caderno de notas de Yasukichi é outro dos meus favoritos, com muitos trechos que ficam na mente mesmo dias depois. Assim como Rodas Dentadas, Akutagawa escreve algo mais autobiográfico e separa em partes com títulos temáticos. Esse conto se passa na época que ele era professor de uma escola militar, o que traz algumas questões de como eram os militares da época. Cada divisão que ele faz tem algo que valha a pena comentar sobre. Em Au! o leitor fica com raiva desse militar e consegue entender muito bem que ele se sente superior em fazer o garoto mendigo se humilhar para conseguir um pouco de comida, trazendo mais uma questão psicológica. No final o Yasukichi perguntando se queria que ele latisse também pra receber o pagamento foi genial. Pausa de meio dia (um devaneio) me lembrou ao mesmo tempo de Alice no País das Maravilhas e do Diário de um Louco de Nikolai Gogol na parte em que ele começa a imaginar as lagartas falando, ou que uma mancha de tinta é uma lagartixa, ou que o professor de química é um demônio, ou que o idoso ficou jovem e ele tinha ficado idoso. Leva a pensar se ele ficou tão perdido em pensamentos que começou a imaginar coisas ou ele estava alucinando. A vergonha é muito legal de ver um lado mais vulnerável dele em uma coisinha do dia a dia, fiquei imaginando como seria ter uma aula com ele. Ele também tem um pensamento interno sobre todo sistema de aulas que eu achei muito legal, sobre querer compartilhar outras questões em sala mas não poder. Um guarda corajoso traz de novo um foco no psicológico militar e a questão do heroísmo e recompensa, a conversa no final te faz pensar bastante sobre o assunto. A escrita de Akutagawa nesses contos cotidianos é tão deliciosa, é como se tivesse lendo paginas de um diário mesmo, incluindo os pensamentos pessoais dele e coisinhas do dia a dia.
A vida de um idiota, assim como Rodas Dentadas e Passagens do caderno de notas de Yasukichi, também é um conto autobiográfico separado em varias partes temáticas, se assemelhando mais com Rodas dentadas por passar o mesmo sentimento de não aguentar mais viver e mesmo buscando sentido da vida na literatura ou nas coisinhas do dia a dia ele simplesmente não consegue mais sentir prazer em viver. O final é impactante demais sabendo que ele morreu um mês depois, do exato jeito que ele descreveu na parte 51, dá um sentimento de desespero até. As partes dessa história contam a vida toda a partir de uns 20 anos e cada trecho, por mais curto que seja, expressa muito as emoções puras, mesmo sem elaboração nos pensamentos o leitor consegue sentir o que ele queria dizer naquele momento. Por conta disso, tiveram várias partes que mesmo se fosse só uma frase ou uma linha eu parava e ficava pensando nelas pela pura emoção que elas causam. Também mostra bastante das relações humanas dele e como ele pensava sobre as pessoas na sua vida, aquela parte que ele pensa "será que eu ainda a amo?" e fica surpreso com a própria resposta positiva ou a parte do nascimento do primeiro filho que ele só consegue se sentir melancólico ou a parte com a amante que ele parecia contente por um momento ou a parte que ele se sente preso por tentar não decepcionar a família dele e assim não poder fazer o que realmente queria pra aproveitar a vida. No fim, parece tanto uma autobiografia quanto uma carta de suicídio. Eu gostei bastante desse também, entra no meu top3 contos dessa edição e traz trechos que mesmo depois de ler há um tempo você ainda para e pensa neles.
Recomendo muito a escrita de Akutagawa, seus contos seguem pertinentes até hoje e possuem um conteúdo riquíssimo!