Lucas1429 07/11/2022
O inusitado essencial
A prerrogativa política atual, em especial a comportamental da direita/elite brasileira, faz um contraponto ao público evidenciado por Kafka em maioria de suas obras. Geralmente são sempre estes as vítimas estruturais sistêmicas, incluindo o próprio, aqui não por falta de privilégios, mas o que essa sintomática o causava: a pressão profissional atrelada à familiar. Kafka, ao indicado, era congratulado pela veia jurídica e sem aplausos à verdadeira voracidade, a artística. Desestimulado em demasia pelo pai, faz da autocrítica o selo que o externaria anos depois de morto ao importante posto de porta-voz como entendedor dos espectros da alienação humana.
A edição reúne 15 textos, contendo contos, novelas, aforismos. A sua obra máxima também está lá, A Metamorfose, ou a desimportância de uma vida. A tradução, introdução e notas de Modesto Carone potencializa a alcunha de cosmopolita europeu que, vivo, Kafka esbravejava, mas internalizado de forma tímida. Sua força era transportar enredos repletos de incredulidades que também chocariam o leitor, e soariam incompletas aos seus muitos desfechos, para exemplificar ideários em sua literatura inusitada e essencial.
Destacarei meus escritos favoritos do compilado, eis:
O veredicto: destrincha uma culpabilização de um complexo de Épido às avessas, com o protagonista martirizado por um pai sem a percepção causal de opressão, tendo o filho uma autoindulgência em se sacrificar ao final como forma de penalização pessoal. Como citei, e é fato consumado, Kakfa não mantinha uma completa cordialidade paternal.
Um artista da fome: relato de um exibicionista corporal, que permanece por dias, meses, enjaulado em espaço público para observação coletiva e é logo substituído por um animal, que aparenta, em toda sua irracionalidade, manter maior interesse nas pessoas. Sinto uma pretensão à sólida crítica bem rasa das pessoas em como são interpretados atos políticos.
Na colônia penal: facilmente a melhor produção, em que se descreve um explorador que visita um espaço de penalizações a “criminosos”, ante qualquer defensiva, em que o condenado fica preso enquanto uma série complexa de engrenagens são calibradas e posteriormente, através de um rastelo e de uma série de agulhas, a sentença literalmente será marcada em seu corpo. Apresentado por um oficial, ele remete aos tempos áureos administrados por uma antiga mão de ferro, que normatizava as torturas como aparatos civilizatórios de eliminações dos mais fracos. Toda coincidência...
Diante da lei: aproveita a mensagem penal e interpretado como um excerto de “O Processo”, ou ainda uma parábola destacada, averiguando as falácias da justiça a quem convir.
A Ponte: também é um pequeno texto que elenca inúmeras interpretações, mas retém esta interessantíssima: sobre amores e expectativas românticas encerradas. O possível paralelo se dá pelos noivados infelizes que o autor desatou em sua curta vida.
A Metamorfose: a pena máxima! Diante de todos os meandros já explorados a seu respeito, na área da psicanálise, fantástica, social, a última é a mais reaproveitada, em que enaltece Gregor Samsa, já em primeira linha transformado em um inseto, praticamente conformado com o status presente, e, direcionando sua preocupação com o exterior, para além da sustentação familiar, pois era a única renda da casa. Após sua morte, são esses os primeiros a se aliviarem com o despacho do problema, repondo Samsa por planos que os beneficiassem. A Kakfa, resta representar o homem burocrático, esquecido por si próprio, invisibilizado pelos demais, que é a massa manobrada por qualquer outro em um estalar de dedos.
Ao final das leituras, não resta dúvidas que na sua tentativa da compressão humana, baseando-se tanto em seus tumultos pessoais e na visão de mundo, moldou o enfado característico de suas histórias e de seus representantes por uma via de mão reta - destacou o mais vulnerável e inundou de expectativas moralizantes, às vezes sem motivo aparente, para, graças a Max Brod, que decidiu publicar os manuscritos póstumos do amigo, nos regalar com suas metáforas de percepções e suas excentricidades de demonstração de uma estrutura de sociedade sempre em vias de ruir.