Laryssa234 03/01/2024
Muito mais do que você imagina
Em boa parte do livro existe uma atmosfera melancólica, recolhida, taciturna. Sobre o livro paira algo pesado, que às vezes parece sufocar o leitor com um universo desesperadamente limitado - o universo apático e mirrado em que Anne vive. Seu mundo é uma prisão minúscula.
Não é uma tristeza ostensiva, trágica, de fazer chorar. É mais uma apatia; uma falta de cor e brilho. Nada, aqui, faz lembrar das páginas maravilhosamente vivas de Orgulho e Preconceito, por exemplo, que só faltam soltarem fogos de artifício mal você as abre.
Persuasão é o livro mais maduro de Jane Austen, se diferencia da atmosfera das outras obras da autora. Jane Austen, aqui, já era uma quarentona e tinha dominado com maestria quase inigualável a arte da sátira mais leve e cômica. O tom é sóbrio, a escrita é muitíssimo elaborada e a ênfase recai sobre o mundo interno da protagonista: Anne.
Anne no livro é uma mulher inteligente e doce. No original, Jane diz que ela tinha “elegance of mind” - ou seja, uma inteligência capaz de fazer distinções sutis e captar detalhes com a minúcia de um microscópio. Anne é capaz de entender as pessoas muito melhor do que elas próprias. Age como um oráculo universal; o recipiente e filtro de todas as picuinhas entre familiares e amigos. Tinha um caráter doce, meigo, potencialmente PASSIVO.
A palavra de Anne não tinha peso. Mal falava; quando falava ninguém lhe dava ouvidos. Anne sempre cedia. Era ignorada e desprezada pelos pais e irmãs. Com 27 anos de idade (para época já era um final de feira) continua bonita. Mas seu auge passou. Além disso estava completamente sozinha. Sua única amiga era Lady Russell.
Porém Lady Russell fora justamente a mulher que a tinha aconselhado, oito anos atrás, a não ficar com o sujeito pelo qual era loucamente apaixonada: Capitão Wentworth. Anne tinha se deixado PERSUADIR. E Lady Russel a havia aconselhado pois, na epoca, Wentworth era um pé-rapado, sem posição social, imprudente, passional demais e provavelmente instável. Lady Russell é prudente, tem um certo preconceito de classe e julga Wentworth como um doido varrido.
Anne perdoa Lady Russell mas se recusa a trocar com ela uma única palavra sobre o assunto, ficando completamente sozinha sobre o assunto mais importante de sua vida. Lady Russell era como sua segunda mãe, sua única figura de afeto a havia aconselhado a largar o homem que hoje em dia era rico.
Anne perdeu o tesão de viver, vivia no automático e se entregava à melancolia. Era pessimista e se fechava cada vez mais dentro de si. Ela é uma coadjuvante de sua própria história. “Persuasão”, no final das contas, pode ser lido como a história de uma Anne cuja palavra vai ganhando peso, muito aos poucos, e aos poucos ela se torna a protagonista de sua história. E de como a primavera pode nos surpreender com seu brilho e vigor.
O título “persuasão” não quer dizer só que Anne se deixou persuadir por Lady Russell. Na verdade a persuasão que mais importa é uma autopersuasão: Anne, sendo uma mulher inteligente e capaz passa ANOS criando defesas racionais contra a paixão desenfreada pelo capitão. A autopersuasão de Anne consiste em ela vencer as agonias e o medo da rejeição para se permitir ter esperança outra vez. Quando ela recita poesias em VOZ ALTA perto de Wentworth é o primeiro passo na libertação de sua voz.
Anne e Wentworth não estavam destinados a ficarem juntos. Não haveria como ela saber se os conselhos de Lady Russell estavam certos ou errados. Aliás logo no começo do livro a mãe Anne tinha se casado com um imbecil por um impulso apaixonado - exatamente como Anne queria ter feito. Paixão não garante nada, razão não garante nada, conselhos ou seguir os passos da mãe não garantem nada. Se Persuasão tem alguma mensagem, é esta: Anne poderia ter se lascado e ficado sozinha. Porque a vida real é assim.
Já Wentworth, amava Anne parcialmente por ela ter virtudes tradicionalmente feminis: docilidade, modéstia, sentimentos refinados.Mas ele queria dela a força, ousadia, ímpeto viril e rebelde que ele mesmo tinha. Não entrava em sua cabeça que a doce Anne não tivesse se rebelado contra Lady Russell. Então ele volta flertando com meio mundo e tratando Anne com frieza polida e discursos cínicos de como deveria ser a mulher perfeita. Também, Wentworth também precisava de uma autopersuasão.
Quando no clímax do livro, Anne resolve soltar a voz e fazer um discurso em voz alta para várias pessoas só para que Wentworth a ouvisse, ela diz algo que somente ele pudesse entender: “O único privilégio que reivindico para meu próprio sexo é o de amar por mais tempo quando se foi a existência ou a esperança”. Assim Wentworth deixa-lhe uma carta “suas PALAVRAS atravessa meu coração” No tempo de Anne homens e mulheres solteiros não poderiam nem ficar no mesmo quarto sozinhos, toques físicos em público eram impensáveis, então Anne sofre o livro inteiro na presença de Wentworth sem qualquer tipo de privacidade. Esse é seu drama.
Quando Wentworth ressentido com Anne diz a Louise diz-lhe: “vê essa avelã, com a casca dura e brilhante, mesmo depois de um outono rigoroso? Seja como ela” E Anne que escutou a conversa e decidiu fazer seu discurso, sabia que Wentworth usara a avelã para exemplificar Anne. Pois ela tinha continuado a amá-lo por oito longos anos sob o outono da completa desesperança. Anne tinha criado uma casca brilhante - porque ninguém sabia de seu sofrimento.
Anne era imensamente forte, ela não arreda o pé, não reclama. Ama, sofre, destrói-se por dentro mas continua forte. Por isso Anne o responde à altura. Ela ainda o amava. Ela não tinha arredado o pé. Nela o amor tinha sobrevivido a desesperança. É por isso que Wentworth não se aguenta e escreve a carta. É por isso que ele diz a Anne que suas palavras haviam transpassado-lhe a alma.
É por isso que o livro é um clássico eterno.