Lugar Público

Lugar Público José Agrippino de Paula
José Agrippino de Paula




Resenhas - Lugar Público


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MatheusPetris 12/10/2021

“Longe de respeitar formas imóveis, cada novo livro tende a constituir suas leis de funcionamento ao mesmo tempo em que produz a destruição delas mesmas.”
– Alain Robbe-Grillet

Logo nas primeiras páginas de Lugar Público, nos confrontamos com um estranhamento revestido de incompreensão; o qual, progressivamente, será talhado com mais estranhamento, enquanto a incompreensão se deslocará do estranho para criar asas. O sentido, o fim, o objetivo, ou seja, a compreensibilidade narrativa não tem razão de ser nesse romance. Aqui, desbravamos a alucinação. Se tem caráter surrealista, pouco convém versar sobre, afinal, a experimentação absoluta & absurda, tem, em Agrippino, uma total aversão a modelos e nomenclaturas. Eis a encruzilhada.

Fui pretensioso. No início, a qualquer custo, desejava desenhar possibilidades, como se fosse possível rabiscar presságios sem que a ponta do lápis se estilhasse. Na minha soberba lógica-racional, tentei desvelar os narradores, ou melhor, suas diferentes narrativas. Na intenção de localizar padrões ou uma trilha demarcada, deparei-me com uma selva. Me sujei daquilo que não conheço. Aterrado fui me aterrar. Só ler. Nada mais. Já me ensinara Machado de Assis: “O melhor que há, quando se não resolve um enigma, é sacudi-lo pela janela fora.”. Ou melhor, eu quem havia criado o enigma.

Havia esquecido de outras lentes de Agrippino. Afinal, seu olhar enquanto cineasta, também sacode, assombra, recalcitra. E fica. O espectador é o mesmo — o espírito é aquele. Se embalemos pelas imagens. As imagens d’Elê, o narrador-personagem que vislumbramos, sempre à espreita, comunica tanto, que se for apagado, restará o lampejo desse tanto. Lampejo que risca marcas em brasa. Assopremos este fragmento, cintilante e infinito.

O protagonista é um Eu cambaleante, apático, inerte, sofrendo de forma cíclica (pela construção textual) & infinita. Seu afago, ou melhor, sua fuga, é através das telas de cinema. Em meio aos problemas familiares, a ditadura militar eclodindo, as amizades tão cambaleantes quanto, e a própria ideia de amor é rarefeita. Ele tenta, mas nada o faz vibrar, seu corpo parece esfriar a cada página, a cada relato, a cada sonho. Ou eu estou interpretando a personagem em demasia? Afinal, seu passado é turvo, descrito de forma repetitiva. Suas memórias, chagas indeléveis? São, nas palavras dele, “Frases interrompidas. Irrealidade absoluta de minha vida presente, irrealidade da vida futura, irrealidade da vida passada.”

A própria descrição dos espaços contempla uma sinestesia anestésica, sufocante. Em determinados momentos de cunho realista, enquanto em outros, de total alucinação. Todavia, não são contraditórias; afinal, são complementares na medida em que a antropofagia oswaldiana deglute tudo & todos. E exprime esse único. Penso, nos produtos importados, quase sempre escritos em itálico, em tom jocoso, ou nos tantos filmes vistos e não vistos, na dublagem não feita, no Papa enquanto personagem libertino, na filosofia metafísica, mas também na filosofia de buteco... Entre tantos outros elementos que viriam a chegar ao paroxismo em seu romance procedente, PanAmérica, publicado dois anos depois.



Retomando o Agrippino cineasta, muitas dessas descrições, aliadas a cenas dramatizadas (a lembrar que Agrippino têm forte raízes teatrais), são organizadas em prol de uma montagem que claramente é possível aproximá-la da montagem cinematográfica, num jogo de imagens que são lançadas e organizadas, para posteriormente, serem aniquiladas, afinal, outra coisa a lembrar, o próprio cinema de Agrippino tem seu caráter anti-linear, fragmentário e disperso – e isso não significa aleatoriedade. Não podemos resumir por elipses, nem por analepses, mas por um imbricamentos delas e de uma contemplação do presente, do apenas ser & estar: “Eu estou preso ao imediato. Este instante. Este instante. Os ruídos isolados da máquina de escrever. O presente faz com que eu…” Advirto: não estou buscando sentido e/ou interpretando os estilhaços. Explico-me.

Perto do fim do livro, Agrippino afirma: “As frases que escrevo são de três tipos: uma que pretende dizer algo, outra que não pretende dizer e uma terceira que encobre o que deve ser dito.” Pensemos em como isso se relaciona com a construção de sua narrativa. Uma das vozes é escrita em primeira pessoa, através dos olhos e experiências cotidianas do protagonista que só conhecemos por Ele. Uma outra, um narrador onisciente em terceira pessoa que nos relata acontecimentos de várias personagens, inclusive o próprio protagonista. A terceira das vozes, é de uma linguagem onírica. Espremendo sonhos, revelam-se absurdos ainda mais intensos do que a realidade já absurda. Ainda, pode-se situar uma quarta, numa espécie de mistura fronteiriça entre autor-personagem-narrativa: um amálgama que parece tomar corpo e conversar com o leitor. Quem é o autor? Quem é a personagem? Quem é o narrador? Talvez, todos se situem nos vazios internos de uma esfinge.

Na realidade, através de meus questionamentos e da ideia de “absurdo”, constatei o choque de um romance avesso a sua tradição – e não o digo num sentido pejorativo. Pois, aquele que admira a tradição, buscará sempre a inovação, ou, como nos disse (mais ou menos) T.S Eliot: a lapidação de seu talento individual. No primeiro contato, a perceber pelo início deste ensaio, eu parecia acreditar justamente no oposto do que esse romance se mostrou, naquilo que Robbe-Grille em seu ensaio “Um caminho para o romance do futuro”, indagou: “uma nova forma sempre parecerá, mais ou menos, uma ausência de forma.” Afinal, “mesmo o observador menos condicionado não consegue ver com olhos livres o mundo que o cerca.” Ainda citando Grillet, ao repassarmos tantos elementos solitários & contraditórios que flutuam nesse livro, eles “tem apenas uma qualidade séria, evidente: é a de estarem ali.”

E eu lhes pergunto, é preciso mais do que isso? Atestem e tirem suas próprias conclusões.
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