Renata CCS 26/07/2016Narradora de sonhos.
“No fundo, o mundo é feito para acabar num belo livro.” (Mallarmé)
Maria Margarita é Fada Docine, uma menina dotada de uma teatralidade encantadora, que vem de uma família pobre de um povoado no deserto do Atacama, protagonista e narradora de A CONTADORA DE FILMES, do escritor chileno Hernán Rivera Letelier.
Caçula de cinco irmãos, Maria Margarida vivia na companhia do pai, inválido devido a um acidente nas minas de salitre onde trabalhou muitos anos, e dos quatro irmãos mais velhos, todos dividindo um barraco de zinco carcomido. Eram os anos 50 e, diante da falta de dinheiro, de sua dificuldade de locomoção e da solidão de um lugar sem grandes possibilidades de diversão, o pai de Maria Margarida a seleciona, a partir de uma competição entre os filhos, como a contadora de filmes da família. Com uma memória invejável e um imenso talento para imitar trejeitos, elaborar cenários e inventar histórias, sua fama ultrapassa e fronteira da casa e torna-se conhecida pelos moradores do vilarejo, que também passaram a assistir as suas interpretações.
Mais do que uma simples narradora, Fada Docine (seu nome artístico) apropriava-se dos filmes: interpretava, cantava e inventava seus próprios desfechos, com uma impiedosa honestidade. E quanto mais pessoas apareciam, mais a despachada garota sentia-se à vontade e caprichava em suas narrativas. Mais do que uma forma de fazer dinheiro extra, para Maria Margarida o cinema era a oportunidade de fugir de sua realidade, ir além da vida áspera à sua volta, de sair do seu povoado e recorrer aos sonhos. Sua maior felicidade acontecia nesses pequenos momentos.
"Naquele tempo descobri que todo mundo gosta que alguém conte histórias. Todos querem sair da realidade um momento e viver esses mundos de ficção dos filmes, das radionovelas, dos romances. Gostam até que alguém lhes conte mentiras, se essas mentiras forem bem contadas".
A CONTADORA DE FILMES é um livro especial, encantador, expressivo e original. Partindo de algo tão singelo, Letelier conseguiu desenvolver a história com graça e simpatia. Sua breve narrativa de pouco mais de 100 páginas não o impediram de alcançar um olhar amplo sobre a realidade de seus personagens. O autor nos presenteia com uma narrativa exata, sem sobras; ágil, mas sem jamais se atropelar; tocante, sem jamais ser apelativa.
"Acho que no fundo eu tinha alma de fuxiqueira, pois além de tudo me bastava bater os olhos nas duas ou três fotos pregadas no cartaz – pelo olhar lascivo do padre, o sorrisinho inocente da menina ou o gesto cúmplice da beata – para poder inventar uma trama, imaginar uma história inteira e passar o meu próprio filme."
Letelier nos entrega um livro visceral quando toca na necessidade básica mais humana de fugir das dificuldades por meio da fantasia, da imaginação. Ele constrói sonhos para, logo em seguida, destruí-los diante de nossos olhos. É tão arrebatador que nos faz sentir como se estivéssemos sentados bem próximos, enquanto a protagonista reproduz as cenas, e fica ecoando muito tempo depois de terminá-lo.
Isso sem falar na disposição do texto, que é um atrativo à parte: ele é impresso em retângulos de fundo branco, em contraste com o negro do restante da página, lembrando frames de filmes ou até mesmo uma tela de cinema.
"Uma vez li uma frase - com certeza de algum autor famoso - que dizia algo assim como a vida está feita da mesma matéria dos sonhos. Eu digo que a vida pode perfeitamente estar feita da mesma matéria dos filmes. Contar um filme é como contar um sonho. Contar a vida é como contar um sonho ou como contar um filme."
O livro é de uma delicadeza e profundidade indescritíveis. Pelas poucas páginas dele temos contato com a triste realidade de Maria Margarida e a sua proeza em levar encantamento e diversão através de suas narrativas.
É uma obra sobre a alegria nas pequenas coisas, sobre a infância perdida, sobre o abandono, sobre as falhas que cometemos e sobre as dificuldades de regiões pequenas ignoradas pelo homem.
Um livro tão pequeno, mas com muito a dizer para aqueles que buscarem sua leitura.