Melissa Padilha 06/11/2013
Memorial do Convento
Tem certos autores que metem medo, de ler ou mesmo de escrever sobre. Meu medo neste caso é escrever sobre e não fazer juz a qualidade de José Saramago.
Meu primeiro contato com o autor foi a muito tempo atrás, ainda na adolescência. Depois disso, passei um longo e tenebroso, começo de vida adulta, sem contato com Saramago. Retornei com um dos seus livros, talvez um dos mais famosos, difícil, porém ao mesmo tempo que proporciona uma deliciosa leitura.
Memorial do Convento, conta a história (real) da construção de um convento na cidade de Mafra, em Portugal, resultado de uma promessa feita pelo rei D. João V. Sua esposa D. Maria Ana, não conseguia engravidar e D. João então prometeu que se lhe fosse dado um herdeiro, construiria o convento. Uma menina nasceu e o convento começou a ser construído.
Envolto com esta história, Saramago narra outra, mas esta de amor (essa fictícia), entre Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas, o primeiro voltou da guerra maneta da mão esquerda e Blimunda perdeu a mãe mandada embora de Portugal, em exílio, pela Inquisição, nesse momento os dois se encontram. Blimunda é dona de um poder mágico misterioso, que permite a ela ver as pessoas "por dentro", ver suas vontades. Porém, ela pode controlar quando quer ver, pois ela só consegue visualizar o interior das pessoas, desde que não tenha comido seu pedaço de pão no desjejum. E uma das escolhas mais interessantes de Blimunda é absolutamente nunca olhar o interior de Baltasar, não quer sonda-lo, não quer enxergar seu interior, quer apenas ver aquilo que Baltasar lhe permite que seja visto, que na realidade percebe-se que é tudo o que ele realmente é. Não há fingimentos na relação de Blimunda e Baltasar, não há coisas escondidas neste relacionamento, cada um mostra-se ao outro como é, e portanto a única pessoa que se mostra verdadeiramente como é à Blimunda, ela escolhe não usar seus poderes visuais com ele.
Os dois se encontram e se apaixonam com a rapidez de um respiro. Passam a viver juntos, sem nenhum dos dois quererem a "benção" da Igreja, que ao seu tempo queima mais gente do que abençoa.
Blimunda e Baltasar conhecem um padre, um pouco diferente dos demais de sua época, Bartolomeu Lourenço, o Voador, aquele que sonha em construir uma máquina voadora, uma passarola que o levasse a voar como os pássaros. Um sonho um pouco incomum e um tanto perigoso durante a inquisição da idade média.
Os três passam a viver em Lisboa onde começam, com financiamento do próprio D. João V, a construir a passarola voadora e compartilhar da vontade de voar como é permitido aos pássaros que voem.
O texto de Saramago não é dos mais fáceis, a forma como ele constrói a escrita e mesmo a história pode levar a leitores iniciantes do escritor a se perder, ou mesmo a achar um pouco confuso e lento, mas cabe a persistência do leitor porque não demora muito, e acaba-se acostumando e assim, a leitura flui normalmente. Saramago não usa a maioria dos recursos de escrita comum para um diálogo, de repente nota-se que no meio do texto há uma e outra fala da personagem sem travessão, sem mudança de linha, nada, simplesmente uma vírgula e uma letra maiúscula, por isso descobrir "o ritmo" de leitura de Saramago é essencial para que o livro engrene.
Depois desse estranhamento inicial, que pode acontecer com alguns leitores, tenho certeza que a escrita poética de Saramago irá conquistar qualquer um. Apesar da peculiaridade que Saramago traz em seus textos, em relação a acentuação e pontuação, o texto é simples, quando lido com toda a atenção que este fantástico livro merece. Além disso, o escritor é irônico, sarcástico, a ironia permeia todo o texto, principalmente quando há menção do rei João V ou da igreja católica, seus rituais e santos, os gastos excessivos, a exploração do trabalho, a situação precária, as muitas mortes, ou seja traz à luz diversos eventos extremamente injustos que foram tão comuns naquela época. A critica aliás, é um dos fortes de Saramago, e fortíssimo dentro desta história, porém levemente assinalada com o tom sarcástico e irônico dentro de diálogos e histórias que ocorrem por todo o livro.
Blimunda, Baltasar e o padre Bartolomeu me pareceram totalmente fora da época que eles são descritos, personagens que contribuem para um olhar externo e independente do que aconteceu na idade média e dos acontecimentos envolvendo a Igreja, querem buscar novos rumos e caminhos, rumar até o sol, que é o limite, voar e descobrir o mundo ao qual fazem parte ou talvez, que seja, descobrir novos, já que aquele lá não está muito bom de se viver. Saramago coloca pessoas que não se reconhecem como parte de tudo que ocorre ao seu redor, e busca acima de tudo novas oportunidades e além de tudo olham com outros olhos para o mundo que os cercam. Talvez a oportunidade maior seja voar e voar numa passarola, animada pelo sol e pelas vontades humanas que são capazes de levantar do chão o que parecia improvável e impossível. Afinal são as vontades humanas que trazem e movem a vida, e que elas podem ao final interferir não só na sua vida mas, sem muita previsão na de outras pessoas.
Além de tudo, o final é surpreendentemente lindo. Memorial do Convento não é um livro para ser lido com pressa, é um livro para ser apreciado, compreendido, lido com todo cuidado para que importantes mensagens, muitas vezes em uma diálogo simples, não seja perdida.
Eu vi certa vez, alguém comentando e me perdoe, não me lembro mais aonde, que este livro possuía certa harmonia, e essa foi exatamente a minha sensação. A parte ficcional funde-se de uma forma tão perfeita com a parte real que mal sabemos onde começa uma e termina a outra.
Uma das grandes obras em Língua Portuguesa, Saramago tem uma forma muito própria de narrar sua história, porém é toda essa peculiaridade que o faz um ícone da literatura mundial.
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