Daniel 11/01/2010
Resenha feita para a Faculdade/2004
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
1º Semestre de 2004 - História Noturno
"Memorial do Convento" de José Saramago
Resenha realizada por Daniel "Jota"
História Ibérica I Professora Vera Lúcia Amaral Ferlini
Publicado em 1982, o Memorial do Convento, um romance histórico, é a obra mais conhecida do português José Saramago. Martim Vasques da Cunha, escritor, jornalista e um crítico de Saramago, disse que “Saramago não aceita Deus como Ele é. Talvez seja por isso que é escritor, numa espécie de missão pervertida. Ao criar seu próprio mundo, ele pode transformá-lo com mágicas ...” e é assim que em seu mundo a ficção, a fantasia, a imaginação e o sonho estão profundamente ligados à realidade e à sua interpretação. E é nesse mundo que se passa a história do seu segundo romance publicado: Memorial do Convento.
O Memorial conta a história da construção, que ocorreu entre os anos de 1711 e 1730, do Convento Franciscano de Mafra, nos arredores da cidade de Lisboa, por ordem do rei de Portugal, D. João V. Romance histórico de minuciosa descrição da sociedade portuguesa cortesã e popular da época. E é desta sociedade que surge os personagens Baltazar Sete-Sóis, Blimunda Sete-Luas e o Padre Bartolomeu Lourenço em que o narrador se baseará para contar a história da construção do convento.
E quem seria exatamente este narrador? Durante a leitura ele se mostra onisciente, surgindo às vezes de dentro de personagens: “... e esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova, que tenho visões e revelações...” (p.50), e até crítico direto da ação da sociedade portuguesa: “... por nascer uma criança em Lisboa levanta-se em Mafra um montanhão de pedra...” (p.79). Mas a pergunta continua: quem? Como o narrador conhece o passado, o presente e o futuro do povo português, pode-se considerar que Saramago ao dar-lhe vida, faz do Povo Português e sua língua o narrador do Memorial.
A história, no romance, nasce do desejo de D. João V, o Magnânimo, de ter um infante, herdeiro do trono português, com sua esposa D. Maria Ana Josefa, que não consegue realizar tal desejo. Após uma descrição pelo narrador do dever conjugal e suas pré e pós-cerimônias, o rei é assegurado por um frei franciscano que um infante teria se prometesse construir na vila de Mafra um convento franciscano, e após um tempo a rainha encontra-se grávida do primeiro filho “não bastardo” de D. João V, que na verdade é uma menina. O narrador deixa em dúvida o milagre aí realizado, ao citar a possibilidade de que a rainha já estivesse grávida antes da promessa do rei, e que esta notícia caíra no ouvido do frei e utilizando-se de tal informação, poderia realizar um sonho já antigo dos franciscanos em ter um convento em Mafra. E desde o princípio do romance, o narrador mostra como a sociedade usa da religião, tanto para a fé, quanto para ascensão social e prazeres carnais. Neste momento aparece uma marca muito importante de José Saramago, um ateu confesso, ao criticar a Igreja e seus dogmas: durante o livro inteiro há referências de atos impróprios para o cargo eclesiástico de quem o ocupa, como o já citado acima em relação ao frei franciscano, como no caso de freiras que chegam a fazer um reboliço por que o rei proibira que elas de terem contato com quaisquer pessoas que não fossem parentes (o rei na verdade queria a exclusividade de ter as freiras somente para ele, pois sendo rei, quase um Deus, e as freiras, as mulheres de Deus, apenas estaria cumprindo com o seu dever), ocasionando conseqüentemente a proibição de seus amantes, falsos parentes, que não a satisfariam mais. São citados outras tantas críticas a Igreja neste romance.
A figura mais importante politicamente é o rei, que acredita (assim como toda a população) ser um escolhido de Deus para governar Portugal, como em um sonho que teve: “Verá erguer-se do seu sexo uma árvore de Jessé, frondosa e toda povoada dos ascendentes de Cristo, até ao mesmo Cristo, herdeiro de todas as coroas...” (p. 18).
A Inquisição era presente em Portugal, mostrando o quanto era rigoroso em se tratando do Santo Ofício e seus interesses. Em um Auto-de-Fé, encontra-se Sebastiana Maria de Jesus, marrana (cristã-nova que ainda cultuava escondida o Judaísmo), que por ter um dom de ver além dos olhos comuns é condenada ao exílio. Sua filha, Blimunda, está presente e é “apresentada magicamente” por sua mãe a Baltazar Sete-Sóis, um ex-combatente que perdeu a mão esquerda em batalha e utiliza de um gancho e um espigão em sua substituição. Em relação ao nome de Blimunda, Saramago disse: “ter procurado um nome estranho e raro para dá-lo a uma personagem que é, em si mesma, estranha e rara”. Blimunda volta para casa junto com o recém conhecido Baltazar e seu amigo o Padre Bartolomeu Lourenço, que os casa: “Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras” (p. 88). Blimunda tem um dom que ocorria somente ao acordar em jejum, que a proporcionava ver através das pessoas e coisas.
O Padre Bartolomeu Lourenço, que após teria o Gusmão em seu nome, nascido no Brasil, é cheio de dúvidas em relação ao que aprendeu em relação à Igreja, e mostrou-se diferente ao se interessar por alquimia, e na tentativa de criar uma máquina que pudesse voar, tudo longe dos olhos do Santo Oficio, mas sobre a proteção do rei, curioso sobre tal possibilidade. Padre Bartolomeu pede a Baltazar que lhe ajudasse na construção da “passarola”, que a princípio se recusa por apenas possuir uma mão. “... maneta é Deus, e fez o universo” (p.65) diz o padre, e convence a Baltazar a trabalhar em sua invenção. Neste meio tempo nasce a filha de D. João V, D. Maria Bárbara, que em pouco tempo teria um irmão, D. Pedro.
Baltazar e Blimunda começam o trabalho na máquina voadora. Enquanto o padre viaja para a Holanda, onde pretende aprender a arte de comandar o éter, o que faria subir a nave até onde desejava, o casal Blimunda e Baltazar se encaminha até Mafra, aonde moram os pais de Baltazar. Enquanto isto em Lisboa, o infante D. Pedro falece, e sua mãe já aguarda o terceiro bebê. Após três anos o padre retorna de sua viajem, e descobre que a única coisa que poderia fazer sua máquina voar era a vontade dos vivos, era a vontade dos homens que segurava as estrelas e o ar que Deus respirava, explica Bartolomeu de Gusmão, e que somente Blimunda com o seu dom poderia achá-la dentro das pessoas e prendê-las em um âmbar.
Em Mafra se dá início as obras do Convento, e um grande evento com a presença do rei é realizada. E chega da Itália o maestro barroco Domenico Scarlatti a fim de dar lições de música a infanta D. Maria Bárbara. Maestro e Padre tornam-se amigos, e ao conhecer Baltazar e Blimunda pensa em Vênus e Vulcano, deuses romanos, a deusa da beleza e o feio, desengonçado e manco Vulcano, filho feito somente por Hera, a quem horrorizou o nascimento de filho tão feio. Neste momento se haviam passado 9 anos desde o início do romance. Nesta parte da história surge uma revelação, em que os três eram a Santíssima Trindade, e que sendo Deus Uno (p.166), todos seriam também um. Padre começa a dar os primeiros sinais de loucura, a princípio não notável, mas após a leitura de alguns capítulos a frente se notará que de tanto o padre pensar sobre quem ou o que realmente era Deus, chegando a se considerar de um certo modo Deus também, acabará enlouquecendo.
Após uma epidemia em Lisboa, Blimunda consegue as duas mil vontades humanas necessárias para levantar a passarola. Bartolomeu sente que o Santo Ofício está muito próximo de querer pegá-lo, e de que o acusem de haver se convertido ao judaísmo (o que aparentemente aconteceu na história real de Bartolomeu Lourenço de Gusmão), e que se entregara a feitiçarias. A máquina fica pronta e somente faltaria fazer um teste para mostrar ao rei. Mas o Santo Ofício chega antes e os três são obrigados a levantar vôo na passarola sem um teste prévio, e realmente funciona. Após um rápido aprendizado na prática sobre a pilotagem da passarola, eles pousam em lugar distante de Lisboa. O padre aparentemente enlouquece e desaparece deixando o casal a sós que após esconderem a máquina em meio a folhagens voltariam a pé para Mafra. De tempo em tempo Baltazar retornava ao local do pouso para restaurar algumas peças, mas acabou conseguindo emprego fixo de puxador de bois. A construção do convento continuava em ritmo cada vez mais forte.
Baltazar decide ir uma vez mais ao local de pouso e este momento será o último do casal juntos em vida, pois ele sem querer aciona a máquina e sai em vôo. Blimunda esperou o retorno em vão de seu homem, e decidiu sair à busca dele, que durou nove anos, e que somente terá fim quando em Lisboa ela reconhecer o corpo queimado de Baltazar pelo Santo Ofício, e fazer com que a vontade humana dele se junte a dela. E no dia 22 de outubro de 1730, no aniversário do rei, fica pronto o Convento de Mafra.
O reinado de D. João V foi marcado por grandes construções, como a Igreja do Menino Deus, em Lisboa, as Igrejas da Misericórdia e dos Clérigos, no Porto, a Sé de Lamego, a capela de S. João Baptista, na Igreja jesuítica de S. Roque, em Lisboa, renovação da capela-mor da Sé de Évora e o da já citado Convento de Mafra, a sua Versalhes, a maior construção religiosa do país, que na época a moda européia era a de edificar um grande palácio situado não muito longe do paço, justificada pela necessidade “aristocrática e barroca do isolamento do grande palco, esmagador e mágico, que era a corte” (Rui Bebiano). E além das grandes construções, D. João V também é lembrado pelo grande gasto do dinheiro de Portugal nestas construções, sendo grande parte disto financiado pelo ouro brasileiro.
A marca do tempo narrativo de Saramago são os fatos históricos, como os nascimentos dos infantes, a morte de um, e casamento de outro.
Outro ponto interessante em relação a Saramago é no momento em que ele tenta fazer parte da história, ao citar o nome Saramago como se pudesse ter um de seus ascendentes bem longínquos neste local: “... sabe-se lá que descendência a sua será, e que saiu penitenciado por culpas de insigne feiticeiro...” (p.93).
E nestas palavras finalizo esta resenha sobre o Memorial do Covento: “Na parábola do Memorial do Convento, Portugal é um país que desperdiçou inutilmente a riqueza que tem, onde as máquinas de voar caem porque a sociedade se divorcia dos criadores, e não há empenhamento cívico, nem político para dar lugar à imaginação”(Teolinda Gersão).
Bibliografia Ativa
SARAMAGO, José – “Memorial do Convento”. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2003.
Bibliografia Passiva
ALVIM, Pedro, "Memorial do Convento. Uma personagem chamada língua portuguesa" in Diário de Lisboa, Lisboa, 14 de Abril 1988, pág. 2.
ARNAUT, Ana Paula – “Memorial do Convento – História, ficção e ideologia”. Coimbra: Cooperativa Editorial de Coimbra, 1996.
BERBIANO, Rui – “D. João V – poder e espetáculo”. Aveiro: Ed. Estante, 1987.
CUNHA, Martim Vasques in: www.oindividuo.com/convidado/martim58.htm.
FILHO, Odil de Oliveira – “Carnaval no Convento, intertextualidade e paródia em José Saramago”. São Paulo: Ed. Unesp, 1993.
GERSÃO, Teolinda, in Diário de Notícias, Lisboa, 11 de Dezembro de 1998.
REAL, Miguel – “Narração, Maravilhoso, Trágico e Sagrado em Memorial do Convento de José Saramago”. Lisboa: Ed. Caminho, 1995.
REIS, Manuel – “A Falsa Questão: Ateísmo – Teísmo. Crítica Necessária a José Saramago”. Aveiro: Ed. Estante, 1992.
SARAMAGO, José, in Jornal de Letras, Lisboa, 15 de Maio de 1990, pág. 29.
www.caleida.pt/saramago
www.citi.pt/cultura/literatura/romance/saramago
www.olharliterario.hpg.ig.com.br/entrevistasaramago.html
www.instituto-camoes.pt/escritores/saramago