Lucas 19/08/2022
Ficção histórica/poética: as verdadeiras boas histórias estão ocultas nos grandes eventos da civilização
Não sou estudante de letras ou estudos literários, apenas alguém que gosta de ler... Mas sempre tive na minha vida de leitor uma enorme vergonha: nunca ter lido nada do português José de Sousa Saramago (1922-2010). Isso ficou no passado bem recentemente, restando apenas uma revolta por não ter ficado muito, muito antes.
Diferente do que muito se lê e se acredita por aí, Saramago nunca me causou nenhum tipo de medo com o seu, de fato, peculiar e único estilo de escrita. Pelo contrário, sempre vi esse senhor com enorme respeito desde 1998 quando, em um dos mais antigos eventos que guardo em minha memória, o autor venceu o Nobel de Literatura e se tornou o primeiro (e único até hoje) escritor da língua portuguesa a alcançar tal feito. Obviamente, isso trouxe um grande impacto midiático e, naquela época, já despertou curiosidade e fascínio em mim. Mas, devido a uma série de eventos, contratempos e a uma fila interminável de experiências literárias vividas e a viver, chegou o momento de, enfim, dizer: eu conheço Saramago e quero ler tudo o que leva a assinatura deste homem.
A impressão positiva nasce da convivência que tive com Memorial do Convento (1982), terceiro romance publicado por Saramago e aquele que, incontestavelmente, fincou o nome do português no cenário literário universal. Sim, convivência, porque em se tratando de Saramago já posso dizer que você não lê um livro dele: você adota alguns personagens, cenários e contextos que ficarão consigo, pelo menos enquanto a narrativa não terminar. Nesta obra específica, Saramago empregou uma técnica que marcou suas obras até o ano de 1995: a utilização de contextos e personagens reais (que na sua escrita tornam-se normalmente coadjuvantes), pintando assim um quadro de determinada época. Tal "estratégia", entretanto, não é nada inovadora na literatura (poder-se-ia exemplificar facilmente umas vinte obras importantes do cânone universal que também fazem isso), mas saiba o leitor que ninguém faz isso com tanta poesia e graça como José Saramago.
O contexto real de Memorial do Convento é a construção do suntuoso Palácio Nacional de Mafra, alcunha atual do que foi em seus primeiros anos um convento e que atualmente é um enorme museu, sediado nas proximidades de Lisboa. Sua construção iniciou-se em meados de 1717, atendendo a uma promessa do então rei português D. João V (1689-1750) para que tivesse descendentes com a rainha Maria Ana de Áustria (1683-1754). Dono de um caráter materialista, D. João V ordena fazer do convento um palácio epopeico, comparável apenas, segundo ele, à Basílica de São Pedro, símbolo do Vaticano. A construção é tão relevante que as finanças do reino tornam-se comprometidas, mesmo com o auge da exploração de ouro do Brasil (diga-se, de Minas Gerais); grande parte dos adornos do palácio, que lá existem até hoje, deixaram um rastro de sangue escravo, crimes e atravessadores.
Saramago então aproveita-se desse momento importante de Portugal, a qual pode ter sido o auge do seu poderio econômico e náutico, para construir a fictícia, linda e mística história de Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas, os protagonistas de Memorial do Convento. Baltasar era um soldado, que teve a mão esquerda decepada num dos muitos conflitos bélicos ocorridos naqueles tempos entre Portugal e Espanha. Natural de Mafra, vilarejo (hoje distrito) próximo de Lisboa, ao se ver num auto de fé (espécie de apresentação pública dos condenados pela Inquisição, forte na Igreja Católica daquela época) na capital portuguesa, acaba conhecendo Blimunda. A relação entre eles, como as alcunhas de ambos dão a entender, é cercada de uma aura de misticismo e encanto desde quando seus olhares se cruzaram pela primeira vez. Blimunda possuía um dom peculiar: ela tinha a capacidade de enxergar o interior das pessoas, desde que estivesse em jejum e não fosse à lua minguante.
Tal habilidade acaba se revelando de grande valia para outro núcleo do livro: a trama que gira em torno da lendária Passarola, uma engenhoca de tamanho descomunal similar a um pássaro/barco que foi projetada para voar. O autor de tal engenhosidade? Um padre, nascido em Santos/SP e que viveu boa parte da vida em Portugal: Bartolomeu de Gusmão (1685-1724). Nele, Saramago encontrou uma infinidade de referências fáticas e as explorou com uma sabedoria literária incomparável. Dos vários personagens reais da obra, o padre Bartolomeu é o que mais se desenvolve, especialmente em torno dos dois protagonistas: as cenas em que os três estão reunidos, normalmente em questões relacionadas à Passarola, formam a maior parte das dezenas de momentos inesquecíveis que Memorial do Convento lega à eternidade.
Como todo livro histórico e ficcional, Saramago não faz cerimônia alguma em deixar seus protagonistas num segundo plano para narrar com muita acidez o contexto histórico, como a história da construção do convento/palácio. Nesse sentido, é importante destacar que estamos diante de um dos escritores mais irônicos que já existiram. Ateu assumido, Saramago lança luz a inúmeros aspectos da fé católica que se sustentam em hipocrisias e falsidades, algo que a própria Igreja deveria condenar: as incongruências entre ritos e valores cristãos, a adoração desenfreada a imagens e o próprio convento do título, a qual foi construído com o suor, sangue e vísceras (literais) de muitos indivíduos comuns. Ou seja, só porque um rei conseguiu engravidar sua rainha (como se só dele fosse essa "vitória"), centenas de indivíduos sacrificaram-se para a construção de um palácio absolutamente luxuoso... Terá isso realmente algum cabimento, se tomado sob um sentido plenamente prático, que era o único existente para José Saramago? Da mesma forma, ele nos ensina que, nos grandes eventos e construções da civilização ao longo das eras, as histórias mais incríveis estão nos tipos mais humildes e não necessariamente nos protagonistas. Estas são apenas duas das várias reflexões que a leitura de Memorial do Convento e, creio eu, de todas as outras obras do autor são capazes de criar no leitor.
O núcleo da realeza (D. João V e seus familiares), a Passarola e seus desdobramentos (há desenhos que comprovam que o padre Bartolomeu projetou-a) e a odisseia da construção do convento de Mafra: é neste tripé que se sustenta a narrativa. Blimunda e Baltasar acabam transitando entre estes mundos, especialmente nos dois últimos. E quando Saramago não está contando sobre eles, está, com a mesma perspicácia poética, montando uma narrativa ora calma, ora frenética, mas sempre linda. Suas duas principais características estéticas (as frases de grande tamanho e os diálogos transpostos livremente, sem travessões) reforçam (e não atrapalham) a experiência de leitura. E para nós, brasileiros, torna-se ainda mais especial acompanhar o gênio de Saramago: ele sempre exigiu que seus livros, obviamente escritos no português nativo de Portugal, não fossem em nada adaptados para o português de outras vertentes, como o do Brasil. Ou seja, temos nas mãos um texto universal, puro e sólido de alguém que representou como nenhum (a) outro (a) a nossa língua nos últimos séculos.
Na vida real, a Passarola não voou, o convento de Mafra está firme e forte com três séculos de existência e onde estão Baltasar e Blimunda? Talvez estejam no sol e na lua, enriquecendo ainda mais a mística destes astros. A verdade é que eles eram especiais demais para esse mundo real e por isso são eternos nas páginas de Memorial do Convento: o primeiro grande livro de José Saramago é contagiante, com um final poeticamente destruidor e imprevisto e de uma beleza incomparável, que ecoará até o fim dos dias como um monumento genial da nossa amada língua portuguesa.