Thiago Ernesto 19/02/2013
História ou estória?
Se em 1982, quando foi publicada a primeira edição de Memorial do Convento, o nome de José Saramago era, em grande parte, desconhecido, tanto pela crítica quanto pelos leitores médios, o mesmo não se pode dizer atualmente do primeiro e, ainda, único, escritor de língua portuguesa vencedor do Nobel. O autor, que não chamou a atenção, nem encantou em sua primeira fase, quando surgiu, ainda jovem, na literatura, posteriormente, quando retornou, já maduro, atraiu olhares curiosos para seu estilo inconfundível e original.
Originalidade esta que, para muito além de sua escrita com pontuação econômica, reflete seu, não raro, olhar para a história. Saramago, em vários romances seus, revisita o passado histórico de forma analítica e busca, através da ficção, construir possibilidades para este. É o caso de Memorial do Convento, uma de suas mais conhecidas e bem avaliadas obras.
O romance tem como plano de fundo a construção do convento de Mafra, por D. João V, no século XVIII, se configurando, portanto, como um romance histórico. Entretanto, é necessário ter cuidado com essa classificação pois, para Saramago, escrever um romance histórico não significa, necessariamente, ser fiel à história. Pelo contrário: o escritor a reinventa, usando elementos próprios ou outros, frutos de pesquisas ou de conhecimentos próprios.
Em Memorial, Saramago conta a seus leitores a história de um rei que, fatigado à espera de um filho, faz uma promessa, orientado pelos monges franciscanos, de construir um grande convento caso recebesse um herdeiro. Atendido, o rei dá ordens para que se inicie a construção do grande convento. Obra-prima da arquitetura, este que é um dos mais belos prédios em solo português, não deixa de sofrer duras críticas do escritor, ex-membro do Partido Comunista Português, fortemente influenciado pela ótica marxista.
É nítido que a construção da obra é só um pretexto para que Saramago investigue as personalidades que realmente o interessam: os construtores. Estes, que, segundo boatos sobreviventes ao tempo, passaram de cem mil, foram, segundo a concepção saramaguiana, instrumentos de um rei vaidoso e de uma igreja condizente, usados para erguer um monumento opulento que consumiu, muito mal, as riquezas que vieram da colônia.
É nesse contexto que surgem as interessantes personagens da narrativa: o construtor, maneta, Baltasar Sete-Sóis e sua companheira, a vidente Blimunda. O primeiro vai a Mafra para trabalhar da construção da majestosa obra de João V, trazendo consigo a amiga que possui o dom de ver o interior das pessoas. Dom este que será explorado por um padre jesuíta obcecado por sua máquina voadora, chamada “passarola.” Esta realmente existiu e diz-se que foi o primeiro objeto a voar, tendo o feito em solo português. Saramago, brilhantemente, se apropria dessa história, verídica, contemporânea à construção do convento, para realizar um paralelismo belíssimo entre as duas.
Entretanto, mais que um historiador improvisado, Saramago é, e por isso também um mestre da literatura, um grande contador de estórias. A história, em suas mãos, toma forma de ficção, incorporando elementos fantásticos que seduzem o leitor ávido de uma boa narrativa. No romance em questão, a história da construção do convento, divide espaço com outras histórias, igualmente interessantes e banhadas em fatos históricos.
Assim, sua passarola é distinta daquela presente na história. É alimentada pelo éter que, segundo o padre Bartolomeu, seu construtor, seria mais leve que o ar, fazendo a máquina voar. O éter estaria escondido no interior das pessoas, sendo nada mais que suas vontades. Para capturar essa substância invisível, o padre tem ajuda de Blimunda, uma das mais interessantes personagens que permeiam a obra do escritor português. Capaz de ver o interior das pessoas, a moça captura o éter dentro de um pote e o entrega para o padre. Com isso, o jesuíta consegue por sua passarola para funcionar e realiza uma façanha para a época: voar.
É nesse sentido que os romances históricos de Saramago são maravilhosos: incorporam a um fato histórico, elementos mágicos, dando nova significação a eventos, muitas vezes, sem brilho. No caso da passarola, o autor dá um novo significado ao ato de voar, atribuindo este à vontade humana que é capaz de superar os limites impostos ao homem. Valoriza o impulso humano ao ponto de caracterizá-lo como aquilo que mantem o próprio Deus vivo, como se vê no trecho: “(...) o éter, deem agora muita atenção ao que vou dizer-lhes, antes de subir aos ares para ser o onde as estrelas se suspendem e o ar que Deus respira, vive dentro dos homens e das mulheres (...)”.
Se de um lado temos o grande sonho do padre Bartolomeu sendo realizado, de outro o que está em jogo não é a perseguição de um sonho humano, mas a concretização de sua soberba. Temos Blimunda trabalhando com o padre na passarola e Baltasar, na construção do convento. Aqui se dá um topos da obra de Saramago: a presença feminina capaz de redimir o universo humano.
Essa tópica foi explorada em grande parte dos romances do autor, com destaque para Ensaio Sobre a Cegueira, onde todo um país se queda cego com a exceção de uma mulher. Cabe então a ela guiar os outros cegos pelo mundo devastado. Tão forte quando esta é Blimunda que, ao participar da construção da passarola, em contraposição a Baltazar, construtor do convento, explicita a predileção de Saramago por heroínas que, mesmo anônimas, se mostram mais sensatas que os homens que detêm poder sobre o mundo.
Por último, outro aspecto importante de Memorial, já comentado acima, é sua constante crítica política e religiosa. Política pela maneira que o governo português gastou o dinheiro do ouro brasileiro, na construção de um prédio que não traria benefícios diretos à população. Religioso, fazendo jus ao ateísmo convicto de Saramago, criticando a cumplicidade da igreja com tudo que ocorria e a monstruosidade do Santo Ofício que caçava os infiéis.
Assim, com Memorial do Convento, José Saramago consegue realizar um grande feito: uma narrativa envolvente, crítica e bela. Seu estilo rebuscado, como o próprio convento de Mafra, tomava forma com esse romance. Em 1982, quando publicada, pouco se sabia sobre as proporções que a obra tomaria. Hoje, depois de tantos livros que poderiam ser tratados como magnum opus do autor, o romance ainda guarda um lugar único na obra de Saramago. É aquele capaz de trazer a realidade, crua, para o maravilhoso e fantástico mundo da ficção, transformando a história em estória, digna de ser contada por um grande narrador.