spoiler visualizarDIRCE 16/09/2020
E agora, José?
E agora, José ? Não o do Drummond, mas o Saramago. E agora, José, que faço eu ?
Que faço eu, uma leitora que tinha uma antipatia pela sua figura e verdadeiro pavor dos seus textos enormes sem pontuação e pela sua escrita peculiar, mas que após assistir ao vídeo José e Pilar caí de amores por ambos e passa a sentir uma necessidade incontrolável de conhecer suas obras? E agora? Agora só me resta reconhecer minha mediocridade e tentar recuperar o tempo perdido.
Mia Couto diz que que um escritor nos dá não são livros. O que ele nos dá, por via da escrita, é um mundo. Saramago em O Memorial do Convento, me deu um mundo , repleto de dor, de injustiça , narrado com uma sensibilidade impar. Um mundo que faz parte da História Geral com personagens reais , fatos reais, mas também figuram ações e personagens fictícios . Saramago era engajado com as causas sociais ( fala dele , por ocasião do recebimento do Nobel : "chega-se mais facilmente a Marte do que aos nossos semelhantes") motivo pelo qual , até arrisco um palpite: que o seu intento ao escrever o romance tenha sido uma tentativa de mostrar sua indignação, sua revolta frente a natureza de um poder politico , no qual, vidas injustiçadas, vidas em penúria coabitam com os detentores do poder e da riqueza , como também homenagear homens , que anos a fios carregaram as pedras para a construção do Convento de Mafra, resultado de uma promessa de D. João V - monarca de Portugal no século XVIII - (previamente influenciado) , haja vista que havia dois anos se dedicava a infrutífera tarefa de dar um infante à Corte. Culpa da rainha D. Maria Ana, Claro.
Fazer promessa é fácil quando que se tem toneladas de ouro e diamantes oriundos do Brasil, e quem iria cumpri-la seriam homens miseráveis que trabalhavam para a manutenção da sua miséria.
Dentre esses miseráveis está Baltasar alcunhado de Sete Sóis, um combatente que é dispensado da guerra , por ter perdido sua mão esquerda. Ao chegar em Lisboa , que se encontra em festa, pois haveria um auto de fé ( macabro) , Baltasar conhece uma mulher muito especial -Blimunda - que se encontrava entre o espectadores porque sua mãe estava entre os sentenciados. Não foi amor á primeira vista, foi a primeira pergunta: Que nome é o seu, pergunta Blimunda a Baltasar. Entre eles nasce um amor tocante, feito de entrega, de comunhão e ambos formam um casal nada convencional. Blimunda tinha dom especial , o de ver por dentro das pessoas e retirar lhes as vontades, quando estas se encontravam moribundas.
O sonho de voar remonta desde os primórdios, desde o mito de Ícaro. Um sonho , cuja representação é a de que alçar voo é alçar a liberdade, e esse sonho também foi acalentado pelo nosso Bartolomeu de Gusmão, até então, Bartolomeu Lourenço que queria voar construindo uma passarola. Se Ícaro foi ajudado pelo pai a se libertar que construiu asas artificiais utilizando-se da cera do mel de abelhas e penas de pássaros, o nosso Bartolomeu foi ajudado por Baltasar e Blimunda a construir a passarola. Ícaro foi devidamente prevenido pelo seu pai que ele não poderia voar nem perto do céu e nem perto do mar, pois o Sol derreteria as ceras e águas do mar molharia a asa tornando-a pesada. Mas Ícaro ignorou o conselho recebido e voou próximo ao Sol e teve como castigo a morte. Audaciosos os nossos três personagens. Em uma época onde a inquisição não perdoava desafios, heresias, como eles se sairiam ? Pois é, então...
Mas não são só misérias, sonhos e construção majestática que permeiam o romance. Do cravo de Domenico Scarlatti emana a música. A música que alivia o sofrimento, e no caso de Blimunda a " rescussita".
E há também Deus que existe porque Nele creem. Mas seria Ele um mero espectador silencioso?
Memorial do Convento não é um romance fácil para quem não está acostumado com a escrita de Saramago, mas é um romance imperdível. As páginas finais mexeu comigo de tal forma que pouco faltou para lágrimas rolarem. Percorrer com Blimunda durante 9 anos em sua busca incansável é roubar um pouquinho da sua capacidade de ver as pessoas por dentro e conseguir ver e sentir o tamanho da sua dor.
Quanto ao final... imprevisível, surpreendente , único e lindo de doer.